Pode ter sido pela turbulência dos ventos ou por uma vontade danada de chegar lá ainda que em condições precárias. Mas é indisfarçável que a bússola do ministro Paulo Guedes – o único dito e havido como porto seguro do Governo Bolsonaro – está descalibrada. Talvez a imantação já estivesse comprometida antes mesmo de ele assumir o barco, quanto mais para pilotá-lo em meio de terraplanistas. Assim, o Guedes liberal naufragou.
Acuado pelas contas que não saem do vermelho, por uma economia que não rompe o nanismo e por um patrão que insiste em jogar contra, Guedes abandonou as promessas arrojadas e só pensa em mais impostos, suplicando pelo uso das velhas boias. Ora sobre transações digitais, um upgrade da CPMF para as movimentações online, ora no que ele chamou de “imposto do pecado”, incidente sobre cigarros, açúcares e bebidas, incluindo a cerveja, já descartada pelo chefe.
Pode-se dizer que nada saiu como planejado. Pouquíssimo deu certo.
A produção industrial refluiu 1,1% em 2019 depois de dois anos no azul; o tímido crescimento do emprego não chegou a representar alívio. É verdade que os juros e a inflação continuaram a trajetória de queda iniciada no governo Michel Temer, e isso é parte do pouco que se fez. Mas esses são indicadores perigosos, não raro associados à estagnação da economia.
Com a determinação do Parlamento e a despeito das críticas de seu chefe, Guedes pode exibir a vitória da nova Previdência, e pronto. Privatização, que seria a menina dos olhos, não andou, e o tal Plano Mais Brasil, que inclui um novo pacto federativo, emergência fiscal e fundos públicos, nem está cogitado para a pauta de 2020. As propostas governamentais para as reformas tributária (para a qual o Congresso já tem duas versões sem participação do Executivo) e administrativa só estão no gogó.
Gogó que Guedes tem cada vez mais usado de forma errática, como uma cópia mal acabada da agressividade barata do presidente, que colhe sucesso entre fiéis com os seus maus modos. Guedes, não. Fala besteira – e não são poucas – e se vê obrigado a arrepender depois, alegando sempre que suas frases são divulgadas “fora do contexto”.
Foi assim na sexta-feira, 7, ao comparar o funcionário público a um parasita. Também em Davos, ao dizer que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza; as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Corroborou para a imagem de um Brasil que trata mal seus recursos naturais, completamente alienado quanto às questões ambientais. Ouviu o que não queria (mas precisava ouvir) do ex-vice-presidente americano Al Gore: “Desmatar a Amazônia é produzir pobreza”.
As derrapadas orais de Guedes não são casos isolados. Antes de tomar posse ele já havia desafiado o Congresso Nacional, ao qual daria “uma prensa” caso não votasse os projetos de interesse do presidente eleito. Na época da discussão da reforma da Previdência ameaçou deixar o governo e o país. E foi mais longe ao concordar com a baixaria de Bolsonaro contra Brigitte Macron, mulher do presidente da França Emmanuel Macron: “O presidente falou a verdade, ela é feia mesmo”. Em novembro, incorporou a ultra direita ao criticar o ex-presidente Lula que havia conclamado o povo a ir às ruas contra Bolsonaro: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”.
Nem parece o mesmo Guedes, que nas épocas áureas do Instituto Millenium, do qual foi um dos fundadores, mostrava-se um crítico feroz do digladio direita-esquerda: “A direita brasileira afundou a redemocratização por estar associada ao autoritarismo político e à insensibilidade social do regime militar. A esquerda afunda agora com a morte da velha política por estar associada à roubalheira, ao colapso do crescimento econômico e à insegurança nas ruas de uma decrépita Nova República”. Esse era o Guedes que Bolsonaro reduziu a um “Posto Ipiranga”, metáfora barata que o ministro permitiu popularizar.
Sobrou quase nada daquele liberal que em 2017 dizia que “o aperfeiçoamento das instituições de uma democracia emergente” era “mais importante do que as obsoletas disputas entre esquerda e direta, conservadores e progressistas, liberais e socialistas”.
Ainda que continue sendo a única aposta de muitos e que não abandone o navio, Guedes naufragou. Sua boia de salvação é a CPMF. E essa o país rejeita.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 9/2/2020.