Em sua guerra contra o “marxismo cultural”, Jair Bolsonaro sempre dobrou a aposta quando se viu emparedado. Exemplo mais emblemático foi a substituição de Ricardo Vélez Rodrigues por Abraham Weintraub. Em todos os embates no interior do governo o presidente pendeu para seu núcleo ideólogico, como aconteceu nas quedas de Gustavo Bebianno e do general Santos Cruz. Essa rotina foi interrompida com a degola de Roberto Alvim da Secretaria da Cultura e sua substituição pela atriz Regina Duarte.
Alvim e Regina não são duas faces de uma mesma moeda. Há entre eles diferenças substantivas. A começar pela história de vida da atriz, antiga militante da campanha das diretas em 1984, da eleição de Tancredo Neves em 1985 e em apoio a José Serra para presidente em 2002. Esteve ainda na linha de frente na luta contra a censura, quando o regime militar vetou a novela Roque Santeiro, que anos depois viria protagonizar ao lado de Lima Duarte.
Com o passar do tempo, a atriz, que também desempenhou papel fundamental na luta pelos direitos da mulher no seriado Malu Mulher, assumiu uma posição mais conservadora e apoiou a candidatura de Bolsonaro. Isso não a transforma em inimiga da democracia. Muito menos da cultura. Há menos de dois meses reconheceu a variedade cultural do país como um traço positivo. À época, disse em entrevista que “a arte não pode ter ideologia”. Bom sinal.
Conta a seu favor a intenção de pacificar a cultura, dilacerada pela guerra da qual Roberto Alvim foi seu capitão do mato. Por historicamente ter compromisso e ser representativa da área, há uma expectativa positiva diante de sua indicação para o cargo. Seu nome granjeia respeitabilidade e simpatia.
Não está em questão a coragem de Regina Duarte. O problema é que isso não basta. A questão é saber se conseguirá imprimir um novo rumo ao setor, que vá além de uma relação menos beligerante com o mundo cultural.
O governo Bolsonaro já deixou claro em palavras e atos que tem um projeto para a cultura, assim como para a educação. Ele parte do princípio de que a pátria está em decadência e que é preciso reconstruí-la por meio de uma guerra contra o “marxismo cultural”. Esse projeto se assemelha muito à “reforma patriótica” recente de Victor Orban, na qual o primeiro ministro da Hungria impôs sua visão do “nacionalismo-cristão” à educação e à cultura.
O eixo cultural de Bolsonaro tem muito em comum com outros projetos totalizantes, nos quais a cultura é erigida a política oficial de Estado. Esta instrumentalização a serviço de um projeto de poder aconteceu na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Stálin e na Revolução Cultural da China. Todos se propuseram a criar uma “nova cultura” como alternativa à “arte degenerada”. O discurso do presidente de uma pátria e cultura decadentes vai na mesma toada.
Bolsonaro continua querendo uma cultura oficial, nacional, cristã e heróica. Mas se viu acuado, momentaneamente, diante da resiliência dos freios e contrapesos da democracia brasileira, da repercussão internacional e da condenação quase unânime do vídeo no qual Roberto Alvim psicografou Joseph Goebbels. O presidente “sacrificou” Alvim para preservar sua política.
Terá Regina Duarte força e estatura suficiente para alterar os pilares da política cultural do bolsonarismo?
Difícil crer. É inegável que a atriz tem luz própria. Sérgio Moro, Paulo Guedes, Tereza Cristina e Tarcísio Gomes também têm e muitos acreditavam que este seria um grupo de ministros cujo bom senso e preparo sempre enquadraria o presidente. Como é da lógica da política, o presidente foi quem enquadrou muitas vezes este grupo. O risco é de acontecer o mesmo com a futura secretária da Cultura.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 22/1/2020.