Ulisses ou Polifemo

Tenho um pingo de piedade por quem se monta na mesma verdade por toda a vida e nunca mais lhe sai de cima. Como Lady Godiva, a pureza a servir-lhes de nudez, Salazar e Cunhal tiveram a mesma equestre e unilateral relação com a verdade única e imutável. Mahershalalhashbaz Gilmore é um tipo de cavaleiro anti-salazarista e anti-cunhalista. O cavaleiro de uma só montada corre o risco de nunca saber se vai, quixotesco, em cima de um cavalo ou de um burro. Mahershalalhashbaz já montou o burro e o cavalo, e nem ele jura que tenha sido exactamente por essa ordem.

As dezoito letras do seu primeiro nome, roubou-as a mãe, devota ministra baptista, à Bíblia, dando-lhe educação californiana e cristã, que é, com excepção da educação católico-capuchinha e luandinamente colonial, a mais alegre educação que se pode ter. (E talvez o cronista não esteja a ironizar.)

Eis onde quero chegar: Gilmore teve de mudar de nome. A sua vocação era o basquetebol e as dezoito letras do nome bíblico eram impronunciáveis. Um nome não é uma verdade absoluta e mudou-o para Hershala. Mas também a mão de basquetebolista lhe tremeu e, com a humildade de quem sabe que se enganou, trocou o basquete pela profissão de actor, regressando ao seu nome de dez metros. Voltou a mudá-lo quando a produção lhe veio dizer, “mas que raio, o teu nome não cabe no cartaz”. Reciclou o nome judaico para Mahershala Ali, até por se ter casado e a mulher o ter convertido ao islão.

Com esse nome o conhecemos e admirámos na série House of Cards, nos filmes Moonlight e Green Book, também agora na terceira temporada de True Detective, cujo sublime primeiro episódio os setes seguintes desfiguram e aviltam. Salvam-se os três rostos que Mahershala Ali oferece aos dois passados e um presente que são os tempos narrativos da série.

Mahershala Ali tem os rostos que for preciso ter, disse ele numa entrevista, mesmo na vida real. Por ser negro, físico imponente, conta que em jovem, em Nova Iorque, se vestia sempre com a discreta elegância de Cascais do meu amigo Pedro Norton, com bons sapatos em vez de ténis, evitando assim que as raparigas brancas mudassem de passeio ao vê-lo e que o pessoal de cara pálida como eu, no metro, começasse a apertar a carteira, temendo o óbvio assalto. Em Nova Iorque, punha um sossegado sorriso de preto, contou Ali, para dar conforto aos brancos, satisfazendo as suas expectativas.

Não foi o que aconteceu em 1970, no Bairro Operário, na tropicalíssima noite de Luanda. No Fiat verde que a Faty nos emprestara, ia com três amigos. Éramos dois negros e dois brancos e chocámos com o massacre. Um bando de jovens do musseque espancava um soldado da tropa fandanga portuguesa, que jazia no chão da forma atroz que o delicado Fernando Pessoa nunca cantou. Ao soldado raiava-lhe a farda muito sangue e o Mindo e o Abílio, meus mais velhos negro e branco, foram parar a matança. Acalmaram os atacantes: fora num baile e os soldados tentaram temperar-lhes as namoradas. Houve molho, os soldados fugiram deixando aquele desgraçado para trás. Carregámos os destroços para o Hospital Militar. Salvou-se. Antes, o Cesarito e eu, que éramos os miúdos negro e branco no Fiat, conseguimos falar com um dos desertores da vítima. Justificou a fuga pusilânime citando inadvertidamente Homero: “Eh pá, aparecerem-nos entre as cubatas, à frente um daqueles pretos gigantes só com um olho na testa…”

Aberto a todas as verdades, se um dia se adaptar a Odisseia, o genial Mahershala Ali será o que quiser, Ulisses ou Polifemo.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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