Botão de rosa. Falasse ele português, era o que teria suspirado Charles Foster Kane na hora da sua morte, ámen, num dos mais belos começos de um filme em toda a história do cinema. A nebulosa morte já a agasalhá-lo, “Rosebud” é a palavra inglesa que lhe sai da boca que o bigode exangue cobre. Quem viu o filme já sabe que, no final, se descobrirá ser “Rosebud” a evocação da infância desse homem, que foi dono daquilo tudo. Evocação da neve e de um trenó, irrepetível momento de inocência e plenitude. Mas será mesmo esse o botão de rosa?
O filme, de 1941, é Citizen Kane. Nele, Orson Welles afundou, num pântano de vã glória e fracasso, a vida de dois amantes reais, William Randolph Hearst, então o maior magnate da Imprensa do mundo, e a actriz Marion Davis.
No filme, Kane, personagem que Welles interpreta, tem uma máquina imperial nas mãos e serve-se dela para tentar converter a sua mulher, cantora sem talento, numa grande diva da ópera. Na vida real, Hearst e Marion Davis nunca casaram, mas Nova Iorque encharcava-se de cartazes e néones, a cada filme dela. Hearst, em São Francisco, redecorou um teatro só para ela, e construiu-lhe quase um Taj Mahal sobre a praia, outro no campo. Senhor de todos os jornais, sufocou de tal modo Marion Davis em publicidade que a América a enjoou.
Orson Welles, num acto de contrição tardio – como devem ser todos os actos de contrição, valha-nos Deus –, escreveu um prefácio à autobiografia de Marion Davis, louvando-lhe os méritos – reais – de actriz. Jurou que Kane, personagem que nasce pobre e é educado com dinheiro assistencial, jamais podia ser um retrato de Hearst, rico de nascença. E muito menos a história do casamento falhado e sem amor de Kane e da mulher poderia equivaler, no filme, à história de amor que, nunca casados, mas sempre juntos, Hearst e Marion viveram, e cito-o: “A deles é a autêntica história de amor. O amor não é um tema de Citizen Kane.”
Por muito que chateie os rebeldes sem causa ou lhes atormente o cotovelo, há ricos que se amam e Hearst e Davis amaram-se até ao fim, num estremecido e encantado oceano de prazer. Encanto que partilharam com os artistas deste mundo. Um dos convidados, Bernard Shaw, assombrado com a casa de uma das festas, disse: “Isto era o que Deus construiria se tivesse dinheiro para tanto.”
Só há uma frase no filme que Welles reconhece ser do Hearst real. Durante a Guerra de Independência de Cuba, no final do século XIX, Hearst mandou um pintor, o célebre Frederick Remington, para a ilha, para que ele enviasse ilustrações de atrocidades e batalhas. Mas o pintor telegrafou a dizer que não se passava nada, a guerra era um piolho… vinha-se embora. Hearst quase o matou: “Fique e mande desenhos, que a guerra faço-a eu.”
E “rosebud”? Tem que ver com Hearst? Nada, juraria Welles. Outra coisa diria Herman Mankiewicz, que escreveu o filme com Welles. Herman frequentava as festas de Hearst e Marion. Conhecia segredos do casal que Welles nem cheirava e irritava-o a mania da grandeza de Welles, a confiança arrogante daquele puto de vinte e cinco anitos: tudo era dele. Quando o via passar, dizia: “Ali, pela graça de Deus, vai Deus.”
Talvez, por isso, diz-se, o tenha rasteirado e deixado em Citizen Kane a marca de Mankiewicz. “Rosebud”, esse portuguesíssimo botão de rosa que falece na boca de Orson Welles, era a terna palavra com que Hearst, em momentos de humaníssimo deleite e abandono, chamava ao pequenino orgulho que assomava, tumescente e feliz, na íntima flor de Marion Davis.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.