Anna Karina

“Olhos como um lago claro, uma boca de morango selvagem, um nariz rebelde, uma pronúncia singular da língua francesa, uma maneira muito picante de se mover, brumas de melancolia ocultando seu olhar, ares – às vezes – de diva muda, uma aura escandinava que lembrava Carl Theodore Dreyer: tantas características pelas quais os espectadores de todo o mundo terão identificado e adorado Anna Karina como a heroína por excelência da Nouvelle Vague, naturalmente poética, fresca como a rosa, espontaneamente verdadeira, tal como foi mostrada por seu companheiro e marido Jean-Luc Godard.”

Sem dúvida alguma Anna Karina merecia demais belos textos – e um sujeito chamado Jacques Mandelbaum começou assim o seu, no site do Le Monde, neste domingo, 15/12, em que cinéfilos do mundo inteiro perderam essa maravilhosa atriz.

Tenho certeza de que ela gostou dessas imagens que Jacques Mandelbaum usou para descrevê-la.

Não consigo me impedir de publicar esse lead do jornalista francês aqui no 50 Anos de Textos. Eu não saberia nunca fazer um tão bom, um que ficasse à altura das homenagens que ela merece.

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Tenho de Anna Karina duas lembranças fortíssimas da minha adolescência. Uma é séria, importante; a outra, não tem jeito, é de fazer rir.

Ambas têm a ver com Viver a Vida/Vivre Sa Vie, de 1962, o segundo dos sete filmes que fez com Godard. Aliás, dos sete – conferi agora – vi seis. A única exceção foi Bando à Parte, de 1964. Vi (pela ordem de lançamento) Uma Mulher é uma Mulher, de 1961, Viver a Vida, O Pequeno Soldado, Alphaville, O Demônio das Onze Horas/Pierrot le Fou e Made in USA.

Mas duas das lembranças fortíssimas da adolescência são de Vivre Sa Vie.

Uma é a sequência que ficaria famosérrima, cult, que mostra a personagem de Anna Karina, Nana Kleinfrankenheim, no cinema, assistindo ao clássico de Carl Theodor Dreyer, O Martírio de Joana d’Arc/La Passion de Jeanne d’Arc (1928). Toda a tela é ocupada por um close da atriz que fazia Joana d’Arc, Maria Falconetti. A câmara mostrava tomadas do filme de Dreyer, Marina Falconetti/Joana d’Arc, e imagens de Nana Kleinfrankenheim/Anna Karina sentada na poltrona do cinema – e Nana chora.

Se os filmes têm sido uma das grandes paixões da minha vida ao longo dos últimos 50 e tantos anos, aquela sequência de Vivre Sa Vie é uma das responsáveis.

A outra lembrança, a que inevitavelmente fará qualquer um rir, conto não sem um tanto de vergonha, mas com o consolo de que os adolescentes têm um lado criança, e das crianças se deve perdoar tudo, ou pelo menos quase tudo.

Era um adolescente que de fato amava os filmes, e fiz uns dois cursos sobre história do cinema, dados pelos melhores críticos de Belo Horizonte. (A cidade era três vezes menor do que é hoje, mas tinha bons cinemas, bons cineclubes e bons críticos.) E num deles comprei uma edição dos Cahiers du Cinéma que tinha exatamente Anna Karina na capa e um monte de páginas sobre Vivre Sa Vie. Numa delas havia uma foto tirada de trás, em que aparecia o cabelo negro dela curtinho, cortado de modo a exibir a nuca linda – como essa aí acima. Peguei a revista e mostrei para Bete, minha primeira paixão, que tinha um corte de cabelo bem parecido com o de Anna Karina, seguramente copiado do dela. Logo abaixo da foto, eu tinha escrito a palavra “Toi”. Quer dizer, eu não – aquele adolescente lá que eu fui numa outra encadernação, séculos atrás.

O eventual leitor destas mal traçadas pode rir à vontade. As crianças fazem mesmo coisas engraçadas.

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Nascida em Copenhagen, Dinamarca, em 1940, Hanne Karen Blarke Bayer se mudou para Paris aos 18 aninhos; foi apresentada a Coco Chanel e Pierre Cardin, tornou-se modelo. Consta que ficou conhecendo Godard em 1960, e ele tentou com que ela fizesse uma ponta em Acossado/À Bout de Souffle, seu primeiro longa-metragem, mas ela teria que ficar nua, e recusou o convite. Em 3 de março de 1961 casaram-se.

Ela se casaria depois, de papel passado, três outras vezes, mas, enquanto durou a relação com Godard (divorciaram-se em 1967), foi uma daquelas uniões de atriz e realizador que marcaram a história do cinema, como a de Ingrid Bergman e Roberto Rossellini, Giulietta Masina e Federico Fellini, Monica Vitti e Michelangelo Antonioni. Ou Ingrid Bergman e Harriet Andersson, depois Liv Ullmann, Woody Allen e Louise Lasser, depois Diane Keaton, depois Mia Farrow.

Em 1966, entre Pierrot le Fou (1965) e Made in U.S.A., Anna Karina interpretou Suzanne Simonin,  a jovem cheia de vida, amante de música, que é feita freira contra sua vontade, e sofre dentro do convento como uma prisioneira de campo de concentração nazista ou num Gulag soviético, no filme A Religiosa, de Jacques Rivette.

O filme, baseado no romance escrito por Denis Diderot em 1760 (14 anos após o nascimento de Tiradentes, 29 anos antes da Revolução Francesa), acabaria se tornando famosérrimo não tanto por causa de suas qualidades, que são muitas, mas porque o governo francês da época fez a besteira de proibir sua exibição.  Apesar dela, o filme foi exibido no Festival de Cannes de 1966; um ou dois anos tarde, a proibição revogada, o filme foi um sucesso de bilheteria – o maior da carreira do diretor Rivette. É um ótimo, fortíssimo filme até hoje, tantas décadas e tanta explicitude depois – em boa parte por causa da interpretação extraordinária de Anna Karina.

Quando revi A Religiosa, em 2010, anotei: ‘Sua interpretação como a pobre, infeliz Suzanne Simonin é um brilho absoluto. Vejo no iMDB um texto de um leitor americano que transcreve adjetivos usados por críticos dos Estados Unidos. Vale a pena transcrever: ‘Quando The Nun foi lançado nos EUA em 1971, o filme gerou um monte de críticas positivas. A performance de Anna Karina foi unanimemente aclamada. Judith Crist da New York Magazine a chamou de ‘inesquecível’. Archer Winsten do New York Post a descreveu como ‘soberba’. Gene Shalit classificou Anna como ‘excepcional’, enquanto Kathleen Carroll do New York Daily News se entusiasmou assim: ‘Anna Karina tem uma atuação de profundidade incomum’. De fato, a interpretação de Anna é uma das melhores de sua carreira de mais de 70 filmes.”

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Como toda grande atriz européia, foi cortejada por Hollywood e pelo cinema inglês. No final dos anos 60, filmou ao lado de Anthony Quinn, Michael Caine, Candice Bergen, David Niven, Dirk Bogarde, Michael York, dirigida por George Cukor, Tony Richardson, Guy Green, J. Lee Thompson. Não creio que tenha sido uma boa experiência – nem para Hollywood e os ingleses, nem para ela.

Não tem importância alguma. Anna Karina será sempre, como sintetizou Richard Wilson no verbete sobre ela no livro The International Dictionary of Films and Filming – Actors & Actresses, “um importante membro de um grupo que se dedicou a repensar os objetivos e os meios de se fazer cinema”.

15 e 16/12/2019

P.S. 1: A foto acima é do filmete mudo bem-humorado que Agnès Varda criou para colocar no meio da barra-pesada que é Cléo das 5 às 7, de 1962. Godard estava com 32 anos, Anna, com 22.

P.S. 2: Não, ela não está em Deux ou Trois Choses Qui Je Sait d’elle, o filme com que brinquei na linha fina abaixo do título deste texto. A atriz principal de Deux ou Trois Choses, que Godard lançou em 1967, o ano em que houve o divórcio com Anna Karina, é Marina Vlady. E aí, como se diz, é outra história.

         

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