Em junho de 1989 Mikhail Gorbachev, então presidente da União Soviética, visitou a Alemanha Ocidental, sendo aclamado por onde passou. Todos lhe fizeram a mesma pergunta: quando a Alemanha seria unificada? Diplomaticamente, o pai da perestroika dizia que o problema teria de ser resolvido um dia, mas não naquele momento. Isto havia sido combinado com o então primeiro-ministro alemão, Helmut Kohl: a unificação alemã era uma questão a ser equacionada apenas no século XXI.
O mesmo ponto de vista tinha François Mitterrand, presidente da França, para quem a Europa deveria respirar por meio de dois pulmões: o da comunidade européia e o do leste europeu renovado pela perestroika. A unificação da Alemanha deveria se dar pela renovação do bloco socialista, de forma lenta, gradual e segura.
Mas a história desembestou no outono de 1989, para utilizar uma expressão do próprio Gorbachev. Em 9 de novembro uma multidão derrubou o Muro de Berlim, pondo fim à fronteira física que separava os alemães em dois países de sistemas diferentes. Um capitalista e democrático e outro socialista e de ditadura do partido único.
Símbolo maior da guerra fria, o muro era também o atestado de que os povos do Leste europeu rejeitavam o modelo socialista implantado na esteira dos tanques do exército vermelho, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em toda a região o “socialismo real” foi uma imposição da União Soviética e só se sustentou por 40 anos porque reprimiu a ferro e fogo os povos que tentaram se sublevar. Hungria em 1956, Polônia várias vezes, Checoslováquia em 1968 e a própria Alemanha Oriental em 1952.
Deve-se a Gorbachev o mérito de liberar o gênio da garrafa. Sem ele, a queda do muro dificilmente aconteceria – ou se daria muito tempo depois.
Os ventos da renovação e o sopro de liberdade daquele outono abalaram muito mais do que os alicerces do Muro de Berlim. Como peças de dominó, as ditaduras do leste europeu foram caindo uma a uma. Os escombros do muro enterraram a ilusão do comunismo como ideário libertário, sinônimo do paraíso terrestre.
Mais do que desembestar, a história atropelou quem quis detê-la. Em 7 de outubro de 1989, a fina flor do Pacto de Varsóvia lotou a tribuna no desfile do aniversário dos 40 anos da República Democrática Alemã. Os burocratas do “socialismo real” não percebiam a mudança dos ventos. E ela saltava a olhos nus. A multidão que desfilava olhava para Gorbachev e clamava: “ajude-nos, ajude-nos!” Espantado com o que via, o então premiê da Polônia, Mieczyslaw Rakovski, disse a Gorbachev: “Você não percebe que isso aqui acabou?”
Indiferente ao clamor da multidão, o secretário-geral do Partido Comunista e presidente da Alemanha, Erich Honecker, jactava-se que via no desfile a prova da vitalidade do socialismo na Alemanha Oriental. Ultra ortodoxo, dizia que seu país não precisava de nenhuma perestroika. Nada a estranhar. Dois anos antes, Honecker tinha rechaçado o conselho dos soviéticos de demolir o Muro de Berlim.
Toda nomenclatura aboletada na tribuna iria cair em pouco mais de dois anos. Não sobrou ninguém. A começar pelo stalinista Honecker, destronado do poder um mês depois do desfile.
Nem a temida Stasi, polícia política com mais de 25 mil informantes, foi capaz de deter a avalanche da história. Em 9 de outubro, 70 mil pessoas participam de um ato público em Leipzig, exigindo democracia. As pessoas tinham perdido o medo e a ditadura não tinha mais condições de reprimir. Ironicamente acontecia o vaticínio de Lênin para o desaparecimento de um regime: “quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem”.
E já não podiam em todo o bloco socialista. Cinco meses antes da queda do Muro de Berlim, o Solidarność ganhou a primeira eleição livre na Polônia. Em agosto, dois milhões de pessoas formaram a maior corrente do mundo para abraçar os países bálticos. Por fim, a Hungria derrubou a cerca de arame farpado de sua fronteira com a Áustria, criando um enorme corredor para a fuga de alemães orientais.
Simbolicamente a queda do Muro de Berlim representou também a vitória da democracia como o grande valor do século XX. Esse valor está em jogo hoje em países do antigo bloco socialista, como na Hungria de Victor Orban e na Polônia. E também na antiga Alemanha socialista, com o crescimento da AfD – partido de extrema direita. A história tem dessas ironias.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 6/11/2019.