A vitória do peronista Alberto Fernández nas eleições presidenciais da Argentina, um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, era pedra cantada desde as primárias, quando abriu uma frente de 12 pontos em relação ao atual presidente Maurício Macri. Desde então os peronistas tripudiavam sobre o suposto cadáver do presidente argentino, dizendo que ele “se fue”.
Corroboravam o sentimento de coisa decidida todas as pesquisas dos últimos dois meses, unânimes na ampliação da vantagem do peronista. O último levantamento antes da eleição indicou uma diferença entre os dois de 22%. Dizia-se que se Macri concluísse seu mandato já estaria no lucro. Seria o primeiro presidente não peronista a conseguir tamanho feito.
A previsão de um fim melancólico justificava-se pelo insucesso do governo Macri, eleito em 2015 com a promessa de reduzir a pobreza a zero e de acabar com a inflação. Não entregou nem uma coisa nem outra: a inflação fechará o ano em 60% e a pobreza atinge 37% dos argentinos.
Diante de tal quadro, se surpresa houve na disputa argentina foi o desempenho do atual presidente. Apurados os votos, a diferença foi de menos de 8%. Macri sai da eleição vivíssimo da silva, graças a uma campanha que empolgou corações e mentes de parte expressiva dos argentinos. Nos últimos dois meses, sua jornada “Si, se puede” mobilizou multidões por onde passou e culminou com a manifestação de 350 mil pessoas em Buenos Aires.
O sucesso – sim, é possível falar em sucesso de Macri – se deve às bandeiras que empunhou: liberdade de imprensa, direitos civis, pluralismo e combate à corrupção. Diga-se, de passagem, o governo de sua antecessora Cristina Kirchner, agora eleita vice-presidente, caracterizou-se por perseguição à imprensa e por escândalos de corrupção.
É possível falar no macrismo como corrente política que veio para ficar.
Ele é herdeiro dos valores liberais da ala mais avançada do antigo Partido Radical, cujas maiores expressões foram Ricardo Balbin e Raul Alfonsin. O primeiro era o vice dos sonhos de Perón na sua volta à Argentina e só não o foi porque os fiéis preferiram Isabelita, já que o velho caudilho poderia morrer a qualquer hora. O segundo foi elogiado como “pai da democracia moderna” por Alberto Fernández, no seu esforço de se aproximar da classe média e dos empresários.
Macri sai das urnas maior do que do início da campanha. E também foi vencedor nas eleições parlamentares: na Câmara são 120 deputados peronistas e 119 do “Juntos por el Cambio” (ligado à Macri) e no Senado são 37 senadores governistas e 29 macristas. Sua imagem de um democrata convicto também se fortaleceu. Exemplo disto foi a iniciativa de convidar o presidente eleito para uma transição civilizada, fato inédito na Argentina e raro na América do Sul, que tem como similar as transições no Chile e de Fernando Henrique Cardoso para Lula.
A alternância do poder é um dos valores mais sagrados da democracia. O presidente que perdeu a eleição deu demonstrações de observância desse valor. Nas democracias as coisas acontecem assim: quem ganha tem o direito de governar e quem perde o de exercer o papel de oposição.
Macri se dedicará a esse papel, turbinado por forte bancada no Parlamento. Ao tomar a iniciativa da transição civilizada, plantou para o futuro. Alberto Fernández não poderá acusá-lo de boicote ao seu governo, na hipótese de um fracasso. Comparem sua postura com a de Cristina Kirchner de quatro anos atrás, quando simplesmente se recusou a transmitir a faixa presidencial a Macri.
A eleição argentina foi uma festa democrática, da qual nós brasileiros deveríamos tirar lições. Entre elas a de que é possível divergir em ambiente de respeito, sem ser prisioneiro da polarização do “nós” contra “eles”. De nosso governo espera-se uma postura de respeito à decisão soberana dos argentinos e que entenda equação primária de que um país não faz oposição ao governo de outro país. É tarefa da oposição interna legitimada pelo voto. Para essa função Maurício Macri está plenamente qualificado.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 30/10/2019.