Como Marina reagiria ao saber que a moça do salão de cortar cabelo não seria a mesma de sempre?
Essa dúvida tinha surgido dias atrás. Pode parecer uma questiúncula boba, e a rigor, a rigor é mesmo. Mas, afinal, diz respeito a algo importante: a capacidade de Marina reagir a um fato inesperado, um contravapor, por pequenino que fosse.
A capacidade que cada pessoa tem para enfrentar as adversidades da vida é algo de grande importância. Eu diria até que a capacidade de enfrentar adversidades é tão importante, ou mais, do que a opção sexual, do que a opção ideológica.
Bem, mas aí acho que misturei alhos com bugalhos. Opção sexual não faz mal a ninguém. Já, por exemplo, a opção por uma ideologia radical pode causar danos a muita gente, até mesmo ao planeta inteiro – como o país em que Marina vive aos 6 anos e meio bem ilustra.
Então tá. Prosseguindo:
A capacidade que cada pessoa tem para enfrentar as adversidades da vida é algo de grande importância. O avô materno de Marina é o perfeito exemplo de criatura não preparada para adversidades – talvez até pelo fato de ter sido tão protegido, mimado mesmo, por Deus, pelos deuses, pelo destino, pelos anjos, pelos arcanjos. Por ter tido sorte demais na vida, e não ter enfrentado muitas adversidades das duras, das piores.
Quando bem jovem, a mãe de Marina não era muito dada a enfrentar com coragem, savoir vivre, savoir faire, as adversidades. Aprendeu, no entanto. Aprendeu na batalha, na marra, na porrada. Hoje é expert.
Já a pequena…
***
Bem, a verdade dos fatos é a seguinte: existe alguma criança na faixa dos 6, 7 anos, que enfrenta adversidade na boa, na maior? Sem fazer sequer um pequeno drama? Sem manha, sem chororô?
***
Na maior parte da vida de Marina, cortar cabelo é uma coisa que ela faz com o vô e a vó, no mesmo lugar, com a mesma moça. Tem sido assim praticamente desde sempre. E desde sempre o vovô fica dizendo que é preciso cortar o cabelo, nem que seja bem pouquinho, para ele ficar forte – e Marina, com todo apoio e incentivo do pai, quer porque quer os cabelos longos.
E aqui é necessário dizer que Marina – exatamente como o avô dela – gosta de coisas que se repetem, que são sempre iguais. Marina gosta de brincar algumas brincadeiras do mesmo jeito com que brincou da outra vez, e da vez anterior, e da vez anterior. Gosta do banho na casa do vô e da vó do mesmo jeito que da outra vez. Gosta da mesma história na hora que vai dormir.
Ainda não sabe, mas ela, como o avô, gosta de como diz a letra da canção de Ian Tyson: “All those things that don’t change, come what may”.
***
Ao longo dos quase dois meses em que a avó esteve ausente, falei várias vezes para Marina que a gente precisava cortar o cabelo dela, que o
cabelo dela nunca tinha estado tão comprido. Ou ela fazia cara de paisagem, ou pedia que a gente continuasse a brincadeira, ou propunha uma brincadeira nova.
Quando finalmente a avó voltou da Rússia, saiu-se com o seguinte (podem não ter sido exatamente estas palavra, ipsis litteris, mas foi isso que ela disse) : “Sabe, vovô, por que eu não queria que você me levasse para cortar o cabelo? É que eu gosto de ir cortar o cabelo com os dois, com você e com a vovó.”
Claro, óbvio, natural: all those things that don’t change, come what may!
E então liguei para o salão e pedi para marcar hora com a moça que corta dois ou três dedinhos do cabelo da pequena desde sempre. Mas ela estava de férias!
Marquei assim mesmo.
E aí começou o período de dúvida: estaria Marina preparada para cortar o cabelo com outra pessoa?
Opinei que ela levaria na boa. Mary tinha um pouco de temor, mas concordou. Combinamos entre nós toda uma estratégia: não falaríamos com antecedência para ela que seria uma outra moça. Seria surpresa, na hora.
Mary teve um pouco de medo: e se ela danar a chorar e disser que não, não, não?
No caminho da escola para pegar a pequena, me ocorreu a dúvida: diacho, mas qual é a opinião da mãe? Temos que ouvir a mãe!
Interrompi o trabalho da minha filha no Fórum, perguntei o que ela achava. Disse ela: “Eu falaria antes, mas vocês é que sabem…”
Derrubou minha estratégia! Diacho!
***
Mary e eu refizemos então os planos: no caminho entre a escola e o salão, falaríamos com Marina que não seria a mesma Flávia de sempre que cortaria o cabelo dela.
Falamos. Com muito jeitinho: vovó é craque no jeitinho.
Marina não fez sequer um pequeno drama. Não houve qualquer resquício de chororô, de manha. Nada. Foi tudo absolutamente tranquilo.
E, o tempo todo, aquele dia, antes, durante e depois do salão, a pequena estava especialmente alegrinha, feliz. Afinal, estava fazendo um programa com vovô e vovó juntos, coisa que não fazia tinha uns dois meses ruços.
E ela gosta na vida de all those things that don’t change, come what may. Que nem o Ian Tyson e eu.
Mas também não precisa exagerar, não é? Algumas coisas podem mudar, sim, sem problema, sem drama. Nem tudo que é diferente do esperado, do repetido, é adversidade.
28/8 – 3/9/2019
A foto do alto foi feita uma semana antes desta logo acima…
Um comentário para “Marina e as coisas que não mudam”