A Suprema Corte do país tem um longo histórico em defesa da liberdade de imprensa. Bastaria citar sua decisão de 2009 que revogou a Lei de Imprensa de 1967, criada durante a ditadura militar. Com base nesse parecer e em dispositivos constitucionais, a primeira turma do STF cassou, em 2017, uma liminar que mandava retirar do ar duas reportagens do blog do jornalista Marcelo Auler. Quinze dias depois, o ministro Dias Toffoli cassou uma decisão da Justiça do Mato Grosso do Sul que determinava a retirada do ar do blog do jornalista Nélio Brandão.
Casa de ferreiro, espeto de pau. O mesmo STF acaba de agir de maneira radicalmente diferente quando o envolvido é exatamente Toffoli, hoje presidente da Corte. Ignorando a jurisprudência firmada pelo próprio Supremo, o ministro Alexandre de Moraes restabeleceu a censura ao mandar retirar do ar reportagens da revista Crusoé e do site O Antagonista.
Tudo porque Toffoli sentiu-se incomodado com trecho da Crusoé, segundo o qual ele era o “amigo do amigo” de e-mails da Odebrecht, como consta nos autos de um processo.
O STF agiu em causa própria, ou melhor, em causa de um de seus membros, numa confusão entre a figura de seu presidente e os princípios da instituição. Como se não bastasse, jornalistas da Crusoé e do Antagonista foram intimados a depor na Polícia Federal.
De fato, vivemos tempos estranhos. Um general, o vice-presidente Hamilton Mourão, considerou o episódio como censura à imprensa, enquanto o presidente da instância máxima da Justiça vociferou contra jornalistas e sites, tratando-os como “ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”.
Dias Toffoli diz enxergar uma grande conspiração contra o Supremo e para combatê-la determinou a abertura de uma investigação secreta a cargo de Alexandre de Moraes. Uma medida heterodoxa, para dizer o mínimo, que nem foi solicitada por quem deveria, a Procuradoria-Geral da República.
Uma decisão monocrática, que concentra o poder de investigar em quem vai julgar. O STF suspeita, julga, culpa e condena, passa a ser policial, juiz e júri.
Com o argumento de que isso não encontra amparo na legislação, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito aberto por Dias Toffoli. Moraes desconsiderou o pedido, ampliando a área de conflito entre o STF e a PGR.
Não se ignora a existência de uma extrema-direita que tem defendido nas ruas e nas redes, de forma grotesca e equivocada, o fechamento do STF. Contudo, decisões que fogem ao papel do Supremo só amplificam esse sentimento antidemocrático. E jogam água para o moinho da CPI da Toga.
Que fique claro: o STF é tão imprescindível para a democracia quanto uma imprensa livre. Mas é forçoso reconhecer que, de uns tempos para cá, o Supremo ficou menor aos olhos dos brasileiros. Abriu mão do seu papel de poder moderador ao dar sua contribuição negativa para o clima de radicalização e confronto que se instalou no país. Perdeu também seu caráter de um colegiado, ao deixar prevalecer decisões monocráticas que geram instabilidade em suas jurisprudências. No seu interior instalaram-se disputas, muitas vezes de egos.
Essa não é a sua tradição. Não faz muito tempo, sentíamos orgulho pelo comportamento republicano do Supremo Tribunal Federal.
Esperamos que retorne ao seu leito natural e defenda a liberdade de imprensa com o mesmo ardor de um parecer do decano Celso de Melo: “a crítica jornalística, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas, com alto grau de responsabilidade na condução dos negócios de Estado, não traduz nem se reduz, em sua expressão concreta, à dimensão de abuso da liberdade de imprensa”.
Diz mais: “ela não se revela suscetível à possibilidade de sofrer qualquer repressão estatal ou de se expor a qualquer reação hostil do ordenamento positivo”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 17/4/2019.