Não sei se comece pela orgia, se pela minha professora primária. Sabia lá eu o que era uma orgia e já o áugure romano que era a Dona Emília, minha iluminada professora na Missão de São Paulo, em Luanda, antevia que eu seria Papa. Nem padre, nem bispo, sequer cardeal, eu entraria, como Chalana aos 17 anos, no onze inicial, directamente para Papa.
Assistiam razões a Dona Emília. A escola era dos bondosos padres capuchinhos italianos, praticamente um passaporte para o Vaticano, e era impossível eu não dar nas vistas, por ser o singelo branco numa escola de alunos africaníssimos, tímida gota de leite a pingar o esplêndido e aromático café angolano, que era a massa estudantil.
Ora, foi com devoção capuchinha que entrei, não no Vaticano, mas na mansão de Hugh Hefner, patriarca da Playboy. Nunca estive tão encostado à orgia. Banda de jazz, coelhinhos a correr no zoo de Hefner entre as altas pernas dos flamingos cor-de-rosa, e eis que me levam para a sauna cavada na rocha, as sereias de Ulisses a gotejar do tecto como lábeis e álgidas estalactites.
E não é dessa orgia que quero falar. Falo da orgia de 1501. Alexandre VI, cumprindo os votos de Dona Emília, chegou a Papa quase sem jogar nos juniores: entrada directa no onze sénior. Já tinha até uma catrefa de filhos, amantes que davam para fazer um colar. Vinha de Valência, um Bórgia, família de que foi o big-bang, fazendo dos filhos cardeais, militares e nobres. Tinha também um amor invertebrado pela filha Lucrécia. Ou, usando termo mais leniente, derretia-se com ela.
Casou-a com um condottiero, senhor de Pésaro, nobre borra-botas de que não direi o nome. Foi o desastre e Alexandre VI anulou o casamento invocando que a natureza de Lucrécia tinha horror a um certo recôndito vazio que o marido não preenchia. Era um exagero, mas sabe-se que e como são infalíveis os exageros papais. O condottiero jurou que só não preenchia mais o vazio para não atropelar por trás o próprio Alexandre VI e César Bórgia, irmão de Lucrécia, exagero malévolo, que a História provou ser falso.
Estava Lucrécia, portanto, de novo virgem, e Alexandre VI casou-a segunda vez. Só que, um ano depois, por ciúmes e interesse político do irmão de Lucrécia, esse marido, quando deu conta, já estava morto. Fica então noiva do futuro duque de Ferrara. Para celebrar, o Papa e papá deu uma festa no Vaticano. Jantou-se como Hugh Hefner nunca jantará. À sobremesa entram 50 bailarinas só trajadas a plumas e lantejoulas. Uma centena de nobres e prelados ovacionou-as com um clamor de No Name Boys. Dançaram. As coreografias fariam corar Madonna ou Beyoncé. A cleresia atirava-lhes castanhas quentes para que elas, de quatro, as apanhassem no chão.
Uma exaltação erótica avassalou Alexandre VI. Deu-lhe um Maio de 68 avant la lettre e, num é proibido proibir, ofereceu um prémio a quem mostrasse o maior e melhor desempenho nesse acto com a que a natureza enche o vazio e esvazia o horror. Ah, sotainas! ah, buréis! ah, púrpuras cardinalícias! um humaníssimo desatino fundiu fome, sede e pote, como em crónica registou Johann Burchard, prelado de Estrasburgo. Alexandre, o filho César, Lucrécia deleitam-se com esse nu e pagão afã, que mete a um canto, para não dizer que encosta à parede, a agitação afrodisíaca da sala da bolsa de Wall Street.
Dias depois, de olhos lavados e puros, Lucrécia casou com o seu duque, a quem deu oito filhos. Foram olímpica e eticamente infiéis um ao outro, num ambiente apesar de tudo recatado, se comparado com o Vaticano de Alexandre VI.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.