Estimado Woody Allen, eu pecador me confesso. Parte da culpa é minha. Quando o senhor Castello Lopes, nos meus tempos de director de programas, tentava vender à SIC os teus filmes, eu propunha-lhe sempre comprá-los por um terço do preço que custava um Chuck Norris. Ui, o teu orgulho artístico ferido.
Hoje, ameaçam trucidar os teus filmes e quem os queira ver tem de pagar um alto preço. Os teus e os de Kevin Spacey, os do produtor Weinstein. Daqui a dias, talvez até os de Matt Damon, fanático paladino da livre opinião.
A ti, Woody Allen, meu Chuck Norris de terceira categoria, digo-te uma coisa: vou continuar a ver-te os filmes e, agora que já não tenho de os pagar com o dinheiro de Balsemão, confesso que verei enternecido Annie Hall e que me vou deliciar com o Small Time Crooks, prova provada que tu percebias de gatunagem. Não és o único: de gatunagem percebo eu e sei que os filmes não são teus. Nem os de Spacey ou os de Weinstein são deles.
Em 1571, nasceu em Caravaggio um tal Michelangelo Merisi. Era um corrécio da pior espécie. Um canalha. Dava-se com a ladroagem e com sórdidas rameiras. Catorze vezes preso, molestou, agrediu, matou. Os museus estão infestados de pintura que leva a assinatura dele.
Vejam a sua “Captura de Cristo”: inventa o preto-preto, pretíssimo, e a abjecção, a fealdade do olhar maligno. A cara do Cristo cativo é uma lâmpada acesa no meio desse negrume primordial. Não há no mundo nada mais belo. É impossível que a pintura seja desse Caravaggio assassino e provável molestador de mulheres e jovens. A “Captura de Cristo” é nossa, somos nós que, na escuríssima noite das nossas vidas, vimos buscar explicação e consolo a essa hedionda tela-farol, retrato da delação, da turba insaciável e impiedosa.
A mesma turba, os mesmos olhares e bocas pintadas a humedecido ódio, estão sempre, como na “Captura de Cristo”, prontas a voltar. Não aceitemos, como Cristo, que se “faça em mim segundo a vossa vontade”. No mundo que mulheres e homens levaram milhares de anos a civilizar, os crimes são para ser julgados, mas a pintura de Caravaggio, os livros do nefando Céline, os filmes da odiosa Riefenstahl, os de Allen, Spacey e Weinstein são para ser vistos, hoje mesmo, nas televisões, na Cinemateca, porque toda a censura é concentracionária e ilegítima.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.