Robert Allen Zimmerman, o divisor de águas

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Ali por 1965, havia entre muitos jovens americanos uma pergunta que era divisora de águas, continental divide: “Do you like Dylan?” Conforme a resposta, quem perguntava podia definir o tipo do interlocutor – se era cool, inteligente, bem informado, pra frente, ou se era conservador ou talvez simplesmente por fora.

Foi o que me relataram colegas do Aplicação de Belo Horizonte que passaram uma temporada lá, nos programas de intercâmbio cultural, em especial o American Fields.

Me lembro do impacto que senti quando ouvi pela primeira vez Bringing It All Back Home, que a Lalá, recém-chegada de meses nos Estados Unidos, tinha trazido. Eu já conhecia canções dele, muitas com Peter, Paul and Mary, mas ainda não tinha ouvido ele mesmo cantando e tocando o violão e a gaita.

Me lembro de ter contado a coisa da pergunta “Do you like Dylan?” para um colega do Estadual do Paraná, onde fiz os dois últimos anos do Clássico, em 1966 e 1967, no que eu chamava de meu exílio curitibano. O colega, Sérgio Augusto, era um tipo intelectual, sério, sisudo. Ouviu a história e concluiu: – “Interessante. Aqui a gente não tem uma senha assim”.

Hoje, 51 anos depois, Robert Allen Zimmerman voltou – mais uma vez sem que fosse vontade dele – a ser um divisor de águas, um continental divide. Depois que a Svenska Akademien anunciou que “The Nobel Prize in Literature for 2016 is awarded to Bob Dylan for having created new poetic expressions within the great American song tradition”, o mundo se partiu em dois – exatamente como acontecia entre os estudantes americanos em 1965. Um número absurdo, incrível de pessoas saiu às ruas dos dias de hoje – as redes sociais – para lamentar a opção da Real Academia Sueca.

Muitos foram protestos de baixo nível, tipo: quando é que o Nobel de Literatura vai para um rapper? Um idiota foi capaz de dizer que ano que vem será a vez de Wesley Safadão.

Dos – vamos lá, um chute – 7,5 milhões de pessoas que correram para desancar com a escolha de “um cantor” para o prêmio mais importante da Literatura mundial, quantos conhecem de Bob Dylan duas letras além de “Blowin’ in the Wind?

Chutei a pergunta, chuto a resposta: muito provavelmente algo em torno de 7.498.089.

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Claro, nem todos os que desancaram com a escolha de Bob Dylan falam sem pensar, sem fazer uma avaliação, sem conhecimento de causa. Manuel S. Fonseca, intelectual brilhante, produtor de cinema, diretor da Cinemateca Portuguesa, editor de livros com o capricho assim de uma Cosac Naify, cronista do jornal Expresso, passou boa parte deste 13 de outubro escrevendo sobre Bob Dylan e o Nobel – assim como eu também passei percorrendo, apatetado, a quantidade de opiniões vazadas nas redes sociais em protesto contra a Academia Sueca.

“Não tinham o direito de se servir de Bob Dylan para fazer o que fizeram”, escreveu Manuel, com seu texto sempre, sempre brilhante. Embora não o conheça pessoalmente, tenho a ousadia e a honra de dizer que é meu amigo; permite que eu reproduza aqui os textos que escreve para o Expresso. “É só o que o puto de calções que eu era e que admirou, bebeu, cheirou, dançou e inalou Bob Dylan tem a dizer. Querem fazer-me do grande Bob Dylan um pequeno e obscuro escritor.”

E depois:

“Dylan escreveu. Escreveu contra a morte, contra o esquecimento, como todos os escritores, Mas escreveu numa barca de Caronte de cordas e percussão, de graves e agudos. A épica montanha que se chama Literatura, do alto dos seus 25 séculos, dispersa em epopeias ou elegias, lendas e narrativas, romances e haikus, odes ou epigramas, tem outra identidade. E não me venham com a conversa de que eu estou a levantar barreiras ou compartimentos estanques. Não é dizendo que a Literatura é o que não é, que se lhe renova a grandeza. Ou, nome que parece que foi usado, a universalidade.”

Ao contrário de 7,4 milhões de redatores de posts de protesto, Manuel não questiona a qualidade da obra de Dylan. Reconhece-a. Mas junta-se aos tais 7,4 milhões de protestadores contra a Real Academia Sueca ao sentenciar que, se é cantado, o poema não é literatura, é outra coisa.

A jornalista Denize Bacoccina, de quem tive a honra de ser colega de redação no velho JT, fez uma frase que é um esplendor de singeleza, arte e mira infalível, um jab de nocautear, um chute indefensável: “Uma bobagem elitista essa coisa de que poesia cantada vale menos do que a impressa em papel. O que importa é a qualidade.”

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De minha parte, contribuí para a algaravia geral com vários posts na internet. Um deles:

“Quem fala mal da escolha de Bob Dylan para o Nobel de literatura poderia dar pelo menos uma espiadinha em um dos livros sobre sua obra poética. Há uns 100 livros desses na praça. A Livraria Cultura tem seis páginas com livros sobre a obra de Dylan. Cada página tem 48 títulos.”

Uma folheadinha? Ah, isso é pedir demais. Por que raios neguinho se daria ao trabalho de folhear um livro, se pode emitir um juízo de valor sobre algo que desconhece absolutamente?

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Em outro post com que contribuí para o falatório-sanatório geral, afirmei:

Quando Dylan fez 40 anos, em 1981, o Jornal da Tarde publicou uma bela matéria de duas páginas sobre ele:

“Bob Dylan não existe.

Melhor seria dizer que existem três, quatro, cinco, vários, alguns milhões de Bob Dylans.

Existe o Bob Dylan rebelde, ativista, panfletário, o das “canções de protesto” (e, engraçado, embora este Bob Dylan tenha já quase 20 anos de idade, é dele que muita gente se lembra mais, principalmente as pessoas que não conhecem bem os diversos Bob Dylans). Existe o Bob Dylan lírico, introspectivo. Existe o Bob Dylan louco, visionário, drogado, felliniano, o das longas narrativas surrealistas, de poemas de imagens tortuosas, complexas. Existe o Bob Dylan que inspirou um grupo terrorista. Existe o Bob Dylan que Jimmy Carter gostava de citar. Existe – assim como existiu o Bob Dylan que pregava a rebeldia dos filhos – o Bob Dylan sossegado pai da família. Existe o Bob Dylan judeu – e não apenas judeu filho de pais judeus, mas adepto do judaísmo, visitante de Israel, orador diante do Muro das Lamentações. Existe o Bob Dylan cristão – e, mais que cristão, cristão atuante, apóstolo, evangelizador, proselitista de sua fé.”

Agora existe o Bob Dylan prêmio Nobel.”

***

Em setembro de 2013, Bill Wyman publicou no New York Times um texto que começa assim:

“Bob Dylan, um poeta feroz e intransigente cujos textos, há 50 anos, e ainda agora, crepitam com relevância, deveria vencer o Prêmio Nobel de Literatura. Depois destes trechos de canções abaixo, escritos por Bob Dylan, eu ofereço minha avaliação de por que as letras merecem louvor literário.”

E seguiam-se trechos de “Chimes of Freedom”, “Tangled Up in Blue”, “Desolation Row”, “Visions of Johanna” e “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)” – cada um com uma avaliação do crítico.

O portal do New York Times na internet trouxe de volta o texto de Bill Wyman hoje.

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No meio do matraquear incessante no Facebook, Antonio Romane, sujeito sério, que admiro, permitiu-se uma brincadeira: “Leonard Cohen tem chance para o ano que vem?”
Percebi a brincadeira de Antonio, é claro, mas respondi a sério: “A obra de Leonard Cohen é esplêndida. Talvez seja a obra mais consistente da poesia que também é cantada, depois da de Dylan. Mas não é tão vasta, tão abrangente, nem causou tanto impacto no mundo inteiro.”

Aí outro amigo, Moisés Rabinovici, o Rabino, entrou no papo – e, como em geral faz, com uma bela colaboração. Contou que a revista New Yorker desta semana traz matéria especial com Leonard Cohen, que está resumida no Washington Post de hoje mesmo, o dia em que foi anunciado o Nobel para Dylan.

E o Rabino acrescentou uma deliciosa informação: de que Dylan uma vez brincou com Cohen que ele era o compositor número 1  – e ele mesmo, Dylan, era o número 0.

***

No New York Times da internet, Greil Marcus, um dos vários biógrafos de Dylan, lembrou que uma vez ele cantou o seguinte: “I’m a poet, I know it, hope I don’t blow it.” Foi numa canção brincalhona, sarcástica, intitulada; até o título é evidentemente brincalhão – “I Shall Be Free no. 10”. Está no seu quarto disco, Another Side of Bob Dylan, de 1964.

E Greil Marcus, no texto para o NYT, completa: ele não estourou tudo, não estragou coisa alguma.

Muito ao contrário.

Foi mais ou menos na mesma época de “I Shall Be Free no. 10” que ele se definiu de outro jeito: “I’m just a song and dance man”.

***

O porta-voz de uma geração, o príncipe do protesto, o poeta da música pop, o profeta do rock, a grande maravilha branca, a fonte da inteligência do rock, o João Batista, o Messias, o Cristo.

Ele foi chamado de tudo isso, como eu digo no começo da minha matéria de duas páginas sobre ele, publicada pelo Jornal da Tarde quando ele fez 40 anos, 35 anos atrás.

Negou peremptoriamente ser qualquer uma dessas coisas.

Em 1974, disse, com todas as letras, em “Wedding Song”, do disco Planet Waves: “It’s never been my duty to remake the world at large / Nor is it my intention to sound a battle charge”.

Passou a vida negando ser tudo isso.

Pelo que diz então a New Yorker, agora, aos 75 anos de idade, admite ser o melhor songwriter dos tempos que lhe deram para viver – acima até mesmo de Leonard Cohen, de quem é fã.

É, como bem lembraram na internet todos os grandes jornais hoje mesmo, o primeiro sujeito do mundo a ter conquistado o Oscar, o Globo de Ouro, o Grammy, o Pulitzer e o Nobel.

Quer saber? Os tais 7,4 milhões de pessoas que saíram protestando contra a Svenska Akademien sem conhecer picas da obra do cara, eles que se danem, ou – como diria o Gil, um fã de Dylan – não.

A minha turma é a outra. A oposta.

A minha turma é a que gosta do discurso de Jack Nicholson no dia 20 de fevereiro de 1991, no Radio City Music Hall, quando Dylan recebeu o Grammy pelo conjunto da obra:

“With the possible exception of Boston Celtic, Kevin McHale, he was the most famous person ever to leave Hibbing, Minnesota, and with the possible exception of Francis Bellamy, author of ‘Pledge of Allegiance,’ he was probably the best-ever poet to graduate from Hibbing High, Class of ’59. On my way out here from L.A. as I was crossing the country, its, mountains, its rivers, its crimes, its lovers, that he’s touched so deeply with his gifts, I was thinking what to say on this opportunity to honor Uncle Bobby. So I started leafing through the dictionary. All the words seem to apply to him. Under P, two words down from paradigm, which means model, was the word paradox, the fairest word for him, I think. It means a statement seemingly self-contradictory, but in reality, possibly expressing a truth. He’s been called everything from the voice of his generation to the conscience of the world. He rejects both titles and any others that try to categorize him or analyze him.

He opened the doors of pop music wider than anybody else and yet returned time and again to the simplicity of basic chords and emotions to express himself. He’s been, and still is, a disturber of the peace, his own as well as ours. When he talks about himself, it’s often guarded and shrouded in mystery or humor, but every so often he allows a peek at the person behind the persona. Some of my favorites are: ‘I accept chaos. I’ve given up making any attempt at perfection. I’m called a songwriter, a poem is a naked person, so people say I’m a poet. All I’m doin’ is saying what’s on my mind in the best way I know how and whatever else you say about me, everything I do or say or write, comes out of me.’ Some vintage Dylan.”

É uma boa turma. Minoritária. Mas excelente.

13 de outubro de 2016

12 Comentários para “Robert Allen Zimmerman, o divisor de águas”

  1. Tinha certeza de que você escreveria um texto maravilhoso sobre o Nobel de Dylan, Sérgio Vaz. Mas a polêmica é para iniciados, sem lugar para o meu palpite. Aliás, achei genial a frase com a qual você definiu perfeitamente essa “obrigatoriedade” dos internautas darem palpite sobre tudo, pouco importando se desconhecem totalmente o assunto: “Uma folheadinha? Ah, isso é pedir demais. Por que raios neguinho se daria ao trabalho de folhear um livro, se pode emitir um juízo de valor sobre algo que desconhece absolutamente?”

  2. A academa sueca pega uma carona no talento de Dylan fato observado pelo Manuel
    A polêmica náo pode prosperar e fútil, coisa de coxinhas

  3. Servaz, vim direto ao 50ADT para saber o que você diria sobre o Oscar do Bob Dylan. Na minha profunda ignorância cultural (parei no Chet Baker, que soprava o trompete e não compunha), não conhecia praticamente nada do cara. Li seu denso, entretanto saboroso, rico texto, e digo-lhe que concordo com tudo.
    O que me pegou? Concisos versos de letras mostradas no noticiário, acho que no Jornal Nacional.
    Google à parte, você poderia nos mimosear com
    uma seleta de letras especialmente valiosas – se é que tem tempo para isso.

  4. É por isso de um grande, grande poeta que estamos a tratar. Ao contrário do que tem sido a leitura apressada de alguma Comunicação Social, o Nobel concedido a Bob Dylan não representa de modo algum uma suposta “descida” do Prémio ao patamar da Cultura de massas – o que em si mesmo não teria, a meu ver, qualquer inconveniente de princípio – mas a consagração de um enorme criador literário, de pleno direito, cuja escolha honra quem o escolheu. De algum modo, Alfred Nobel recebeu o Prémio Dylan.

  5. Taí: quando o Miltinho fala sobre outras coisas que não política, ele acerta!
    Valdir, vou tentar fazer isso… Vamos ver se consigo…

  6. Eu não posso ter uma opinião muito esclarecida sobre este assunto porque percebo muito pouco de literatura, embora goste muito de ler.
    Atrevo-me a dizer, no entanto, que a Academia Sueca poderia ter escolhido melhor se queria atribuir o prémio a um cantor.
    Por exemplo Leonard Cohen ou Chico Buarque.

  7. José Luís, Bob Dylan já tem o prêmio e mereceu, mas a lembrança de Chico Buarque para uma próxima acho inteiramente justa (embora improvabilíssima). Como Servaz, não dá para comparar? Até concordo. Bem, uma das minhas grandes façanhas é guardar um texto e, quando procuro, não encontrar.
    Esse perdido mostrava que o Chico não usa apenas rimas e métrica em suas letras, mas elaborações sofisticadas. Um dos exemplos é o emprego de uma figura gramatical que naturalmente não lembro. Guardei apenas um exemplo, na letra da feijoada:uca, açucar, cumbuca. Três vezes uca.

  8. Também acho o Chico um poeta fantástico, maravilhoso, extraordinário. Talvez a palavra que você não esteja lembrando, Valdir, seja aliteração – segundo meu Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, “repetição de sons vocálicos ou consonânticos, iguais ou semelhantes, em séries de palavras para provocar efeitos sonoros”. Chico é mestre – “esperando parada pregada na pedra do porto”, por exemplo. Ou “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem, / Manhã parece, carece de esperar também”. Dylan também é mestre, como quando diz “all your seasick sailors” – que Caetano e Péricles Cavalcanti souberam muito bem traduzir por “seus marinheiros mareados abandonam o mar”…

  9. É mesmo aliteração. Lembrei-me de um exemplo do Fernando Pessoa e aqui fica:

    Em horas inda louras, lindas
    Clorindas e Belindas, brandas,
    Brincam no tempo das berlindas,
    As vindas vendo das varandas,
    De onde ouvem vir a rir as vindas
    Fitam a fio as frias bandas.

    Mas em torno à tarde se entorna
    A atordoar o ar que arde
    Que a eterna tarde já não torna !
    E o tom de atoarda todo o alarde
    Do adornado ardor transtorna
    No ar de torpor da tarda tarde.

    E há nevoentos desencantos
    Dos encantos dos pensamentos
    Nos santos lentos dos recantos
    Dos bentos cantos dos conventos….
    Prantos de intentos, lentos, tantos
    Que encantam os atentos ventos.

    in Portugal Futurista

  10. Nossa Mãe! Que absoluta maravilha!
    Eu não conhecia!
    Muito obrigado por enviar, caríssimo José Luís!
    Um grande abraço.
    Sérgio

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