Na crónica passada falei de Dangerous Liaisons, de Stephen Frears, e da tumultuosa paixão que Michelle Pfeiffer e John Malkovich mantiveram durante o filme. Ele era o perverso e corruptor Visconde de Valmont, ela era a virtuosa e finalmente corrompida Madame de Tourvel, personagens roubadas ao romance de Laclos.
As cenas que filmaram eram de intensa e intelectualíssima sedução. Cá fora, talvez fascinados pelas personagens ou pela retórica amorosa e libertina dos diálogos do filme, os braços de Pfeiffer e os de Malkovich abriram-se para logo se fecharem no corpo um do outro. O facto de Malkovich ser casado tintou de transgressão o carnalíssimo amplexo com que sacudiram os bastidores das filmagens e a caravana onde se deitavam.
Devastador e tempestuoso são os qualificativos que encontrei na Imprensa que falou dessa paixão proibida. Proibida e hoje esquecida. A vida de Malkovich virou-se do avesso e o actor acabou divorciado, mas sobre o amoroso enleio ele fez abater o manto do esquecimento. “Até me custa acreditar que Michelle Pfeiffer algum dia me tenha dito olá”, jura Malkovich. Jura e não mente, desenvolvendo uma teoria malkovichiana da reminiscência. Platão que se cuide.
Como é que alguém, em perfeito juízo, varre Pfeiffer da cabeça? E é já Malkovich que fala: “Não é que Michelle não seja memorável – Deus sabe quanto! Mas tive um black-out. O que quero dizer é que quando penso noutra pessoa, não me consigo pensar envolvido com ela. É como se ela não pudesse ser corrompida por mim. Como se nunca tivesse sido perturbada pela minha existência.”
Não sei se quem fala é um galante Malkovich, se é ainda um reminiscente Visconde de Valmont. No filme, há uma cena em que, já bem e deliciosamente mordido o fruto do incorruptível ventre, Valmont abandona a amada. A cena é embaraçosa e cruel. A personagem de Pfeiffer arde de amor e dor, a de Malkovich, refém da sua perversidade, finge não amar e manda-a embora, refugiando-se num estribilho repetido à exaustão: “Está acima do meu controlo.”
Estava além do controlo deles. A trama a que o filme os obrigava era irresistível. Tanta beleza, o palpitante perfume da gentil e humana depravação das personagens, tinha de arrastar os actores à perdição, que é como quem diz, ao paraíso. Está além de qualquer controlo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.