Há 200 milhões de filmes e livros e canções sobre como o amor começa. Este é o tema básico da imensa maioria das comédias românticas, dos dramas, de quase tudo: o encontro, o começo do amor. Há bem menos filmes e livros e canções sobre o que acontece depois que o amor acaba.
“O amor acaba”, escreveu Paulo Mendes Campos “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas.”
Bem-aventuradas sejam as pessoas de belo texto.
Me fascinam os relatos sobre o que acontece depois da separação.
Acho fantástica, melancolicamente divertida e escrachadamente sem vergonha a versão do cantor mexicano El Chapo de Sinaloa na canção “Para que regresses”: “Que não encontres um amor terno e sincero, que cada homem que apareça pelo teu caminho seja um estúpido, que apenas use teu corpo; que quando peças perdão te ignorem sempre, que te ofendam, que te humilhem dia a dia, noite após noite até que chores, que tu estejas triste e não te dêem consolo, que te arrastem no chão. Para que regresses, para que fiques comigo”.
Quando ouvi essa música, pensei: cacilda, comparado com isso, as letras do Lupicínio são ternas, suaves, amorosas, anti-machistas.
Claro que o Chapo de Sinaloa – ao contrário de Lupicínio, que é um doido de um machista – está brincando. (Será?) Mas, na gozação dele, fez o perfeito hino do mal amado que deseja o pior para o amor que acabou.
Em “Que Tinguem Sort”, Lluis Llach fez o oposto – fez o hino do amor ao ex-amor. Escreveu naquela língua impossível de se compreender, o catalão, mas felizmente é possível achar a tradução para o espanhol, e a partir daí se entender o que ele diz. E o que ele diz é uma maravilha. Se continuarem juntos, “que o sol faça o dia muito maior, e assim roubarão tempo do tempo de um relógio parado”.
Mas, se o amor acabar, se ela disser adeus, ele deseja sorte, felicidade, à mulher que amou, e também ao homem que ela escolher. “Se você me disser adeus, quero que o dia seja límpido e claro, que nenhum pássaro rompa a harmonia de seu canto. Que você tenha sorte, e que encontre o que faltou para você em mim.”
É muito diferente de “Olhos nos Olhos”, a música feminista de Chico falando sobre a mulher se libertando do marido, começando nova vida. A mulher que se liberta do marido possessivo, machista, filho da puta, da música de Chico, está querendo vingança, quase como o amante abandonado de Lupicínio. É irônica; quer ferir o ex-amante com as mesmas armas que o ex-amante usava contra ela.
O amante da canção de Lluís Llach – que ainda não foi abandonado, mas imagina a possibilidade de um dia vir a ser – não é irônico, não é agressivo. Ele é o homem novo – não o sonhado pelos comunistas, mas o desejado pelas feministas, por quem quer de fato mudar a vida, o mundo. O anti-machista, o anti-possuidor, o anti-dono – o que está ao lado da companheira, e não acima ou contra ela.
Há diversas versões da maravilhosa canção de Llach no youtube. Eu convidaria o eventual leitor destas mal traçadas a ver duas – uma gravação nos anos 70, com a platéia ainda não familiarizada com a música, e outra feita em 2007, em que as pessoas sorriem, cantam junto, aplaudem, piscam isqueiros – são felizes. É emocionante, é de arrepiar. Além da extraordinária beleza da música, é uma maravilha ver o tempo passar, o salto dos anos 70, Llach jovem, lindo, a platéia jovem, linda, para agora há pouco, Llach maduro, lindo, a voz mais solta, mais ampla, a platéia toda madura, linda – algumas pessoas não sabem, não vão entender isso nunca, mas é uma maravilha ficar mais maduro, mais velho, porque, nesse processo, é possível também a gente ficar um pouquinho mais sábio.
“Te desejo saúde, e, mais do que riqueza, te desejo amor”
Um sujeito chamado Albert Beach criou, em cima da melancólica, saudosista canção do grande Charles Trenet (foto) “Que reste-t-il de nos amours?”, uma letra que não tem nada a ver com o original francês, mas é também belíssima, no mesmo tom da canção de Llach. Como escreveu em inglês, o mundo inteiro conhece, há trocentas gravações diferentes de “I Wish You Love”. Ainda bem.
“Te desejo pássaros na primavera, que dêem a teu coração uma canção para cantar, e então um beijo, mas mais que isso, te desejo amor. Meu coração partido e eu concordamos: tu e eu não poderíamos nunca ser. Então, com meu melhor, meu muito melhor, te deixo livre. Te desejo um abrigo para a tempestade, uma lareira confortável para te manter aquecida, mas sobretudo, quando a neve cair, te desejo amor. Te desejo saúde, e, mais do que riqueza, te desejo amor.”
Ah, cacilda, o sujeito que escreveu isso merece poltrona especial no céu, à direita do Criador.
Entre as várias versões de “I Wish You Love” no youtube, há uma apresentação de Judy Garland na TV, provavelmente nos anos 50, ou início dos 60, e uma gravação bem mais recente, de Rachel Yamagata, que encerra, da melhor maneira que seria possível, o filme Terapia do Amor/Prime, uma das grandes comédias românticas que já foram feitas. Quando um belo filme encontra uma bela canção, é das coisas mais perfeitas que pode haver. Naturalmente, o último clip citado é um spoiler para quem ainda não viu o filme: são, de fato, as últimas tomadas, e mais os créditos finais.
As íntegras das letras das três canções estão mais abaixo. Pode-se, usando o scroll, ir para lá rapidinho, pulando uma rápida confissão que faço em seguida.
Um orgulho e uma sorte grandes
Era adolescente, tinha uns 14 ou 15 anos, quando me apaixonei perdidamente pelo texto de Paulo Mendes Campos, publicado na revista Manchete. (Sim, naquele tempo alguns adolescentes davam uma olhada na revista Manchete.) A noção de que o amor acaba me pegou quando estava tendo as primeiras paixonites, as paixões de adolescente, e as paixões adolescentes são muitas, são múltiplas, são várias às vezes ao mesmo tempo. Entre os 13 e os 14 e os 15 amei perdidamente umas seis, sete moças – uma delas, achava que era o Grande Amor. Depois de grande amei, claro, outras mulheres – muitas, graças a Deus.
Um dos maiores orgulhos que tenho na vida é que, depois que o amor acaba, o amor não acaba: há amor na amizade. Gosto demais das mulheres que amei, e muitas delas gostam de mim.
Tenho pouquíssimos orgulhos, mas tive muitas sortes. Uma delas é que o amor derradeiro, a mulher que trouxe o amor em paz, tem o dom de conviver bem com as mulheres que amei e que são minhas amigas e acabam ficando amigas dela também.
O amor acaba – e no entanto por que não continuar mesmo depois do fim?
Abril de 2010, depois de ver Um Namorado para Minha Esposa, comedinha romântica do argentino Juan Taratuto.
As íntegras das canções e da crônica
Para que regresses
Por Gabriel Flores e Máximo Aguirre
Que no encuentres un amor tierno y sincero
Que cada hombre que aparezca en tu camino sea un estúpido
Que solo usen tu cuerpo
Que cuando pidas perdón siempre te ignoren
Que te ofendan
Que te humillen día a día noche a noche hasta que llores
Que estés triste y que no te den consuelo
Que te arrastren por el suelo
(Coro)
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Que nunca encuentres quien te puede amar
Por eso lo digo
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Ojala que nadie te ame como yo
Para que regreses
Que cuando pidas perdón siempre te ignoren
Que te ofendan
Que te humillen día a día noche a noche hasta que llores
Que estés triste y que no te den consuelo
Que te arrastren por el suelo
(Coro)
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Que nunca encuentres quien te puede amar
Por eso lo digo
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Ojala que nadie te ame como yo
Para que regreses
Que estés triste y que no te den consuelo
Que te arrastren por el suelo
(Coro)
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Que nunca encuentres quien te puede amar
Por eso lo digo
Para que regreses, para que te quedes conmigo
Ojala que nadie te ame como yo
Para que regreses
Que tinguem sort
Por Lluis Llach
(tradução do catalão para o espanhol)
Si me dices adiós
quiero que el día sea limpio y claro,
que ningún pájaro
rompa la armonía de su canto.
Que tengas suerte
y que encuentres
lo que te ha faltado en mí.
Si me dices te quiero
que el sol haga el día mucho más largo,
y así robar
tiempo al tiempo de un reloj parado.
Que tengamos suerte,
que encontremos
todo lo que nos faltó ayer.
Que mañana faltará el fruto de cada paso
para ganar lo que todos hemos
esperado estos años.
Cada paso nos acerca más al mañana
y por esto a pesar de la niebla, hay que andar.
Si vienes conmigo
no pidas un camino llano
ni estrellas de plata
ni una mañana llena de promesas,
solamente
un poco de suerte
y que la vida nos dé un camino
bien largo.
I Wish You Love
Por Charles Trenet, versão de Albert Beach
I wish you bluebirds in the spring
To give your heart a song to sing
And then a kiss, but more than this
I wish you love
And in July a lemonade
To cool you in some leafy glade
I wish you health
But more than wealth
I wish you love
My breaking heart and I agree
That you and I could never be
So with my best
My very best
I set you free
I wish you shelter from the storm
A cozy fire to keep you warm
But most of all when snowflakes fall
I wish you love
But most of all when snowflakes fall
I wish you love
O amor acaba
Por Paulo Mendes Campos
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
Que lindo! Conheço uma moça (que escreve belos textos,) que também tem orgulho e sortes grandes, tenho certeza. No meu caso o amor não acabou . Virou estrela e continua brilhando
Não conheço as canções, mas as lí colocando músicas de minha autoria. (menos aquela em ingles.) Há,há, há… Agora uma coisa. Realmente um amor só poderia acabar numa lua nova, pois uma lua cheia é um convite ao amor.
Que delícia de texto!!!
Lê-lo me fez sentir sentada à mesa, conversando com grandes amigos.
Que lindo texto e que lindas letras(que eu não conhecia!). Amor é sempre bom e se for possível continuar a sentí-lo, ainda que de maneira diferente, sob outras formas, é perfeito. Pena que nem sempre possa ser assim!
Sérgio,
cê tá certo, o Paulo Mendes Campos é genial.
Desde a primeira crônica, escrita sei lá quando.
Você também é genial. Desde os 13 anos, quando dava uma espiada na “Manchete”. Te conheci nessa época, sei o que digo.
Ah, quanto aos amores que acabam, não sei o que são. Talvez não passem mesmo de amores.
Beijo antigo
Vivina.
Oi, Sérgio, mas não tenha inveja de quem escreve bem, vc tb é f…em escrita. Estou aprendendo com vc rsrsrs. Mas realmente, esse desprendimento q vc tem, de transformar o amor em amizade, esse eu nunca tive, não sei se ainda terei a bênção de ainda ter. Comigo é mais Olhos nos Olhos, vingança pura, desejar o pior, ou, se o sujeito tiver sorte, desprezo.
Mas acho q realmente o amor acaba, acaba pq não foi devidamente cultivado, lembra do filme Namorados para sempre em q os dois trilharam caminhos diferentes e vc não tinha pensado nisso?É mais comum do q vc pensa, eu como psicóloga conheço vários casais q me contam sua histórias de vida e casamento e eu as analiso e vejo q é por aí, começaram com objetivos em comum, com uma vida legal e foram aos poucos se afastando um do outro. Não são como eu imagino q sejam vc e a Mary, q têm muito em comum, são os 2 jornalistas, vêm os filmes q vc vai criticar juntos etc. Isso tudo une muito o casal, não sei ao certo, mas ela também deve gostar muito de cinema, de ler, como vc, de política e assim por diante.
Mas discordo do Paulo Mendes Campos quando ele diz que por qualquer motivo o amor acaba, acho que o amor até resiste muito ou então é a amizade que o substitui, que sei eu, o amor é um mistério que eu e todos nós gostaríamos de decifrar.
Guenia Bunchaft
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