Varsóvia, dia 14 de abril, 17 horas

Liuxa, quatro anos, trepado nos ombros do pai, observa o cortejo. Homens e mulheres vestidos com roupas coloridas, desfilam dançando e rindo. Liuxa não sabe o porquê da festa. Não entendeu o que disse o tio, ao falar de vinte anos de independência. As crianças ganharam uma bandeirinha branca com letrinhas vermelhas mas Liuxa esqueceu o que estava escrito na sua e pergunta à sua mãe o que está desenhado aqui mas ela faz psiu e continua olhando e rindo.

Os homens e as mulheres continuam passando e Liuxa não entende de onde eles saem porque olha em volta e só vê cabeças, louras, morenas, toucas, flores, bonés. No princípio eles tinham roupas diferentes, pareciam ursos de tão peludos. Depois, passaram muitos homens e mulheres amarrados com correntes, com enormes pesos, Liuxa perguntou e o pai falou você pergunta demais e ele ficou triste mas o tio falou eles representam o tempo da escravidão e Liuxa perguntou o que é escravidão e a mãe fez psiu fica quieto ou vamos para casa. Então o tio o pegou no colo e o beijou e disse escravidão é quando homens maus e cheios de espingardas obrigam todo mundo a trabalhar para eles. Aí uma música bem forte começou a tocar e Liuxa percebe que não está vendo mais os dançarinos e começa a trepar nos ombros do tio e o tio o levanta lá no alto mas sua bandeirinha cai e ele começa a chorar. A mãe se abaixa, o pai fala alguma coisa, o tio diz que não conseguimos mais achar porque esta muito apertado mas a velha que está do lado diz fica com esta aqui e dá um beijo na testa de Liuxa. A bandeirinha nova não está amassada e Liuxa pergunta à velhinha o quê que está desenhado aqui e ela diz com os olhos brilhando

paz e liberdade.

O tio o recoloca nos ombros e Liuxa pensa nas palavras enquanto vê jovens a cavalo com roupas bem vermelhas. Não sabe o que é paz nem liberdade mas não teve coragem de perguntar pra velhinha porque os olhos dela tinham brilhado de meter medo. Aí o pai fala alguma coisa e ele perguntou o que foi e a mãe diz que eles estão mostrando como era antes da independência, os cavaleiros são do partido que acabou e a moça de branco é a virgem Polônia. Liuxa olha mas já deve ter passado a moça porque ele não vê nada. Aí a velhinha da bandeirinha começa a gritar ninguém mais vai pôr a mão na nossa Polônia e as garras imundas não mais vão entrar no solo da Pátria. Alguém grita lá na frente Viva a Liberdade e o cortejo pára e todos olham para onde está Liuxa e gritam Viva Viva Viva e Liuxa começa a chorar assustado. A mãe o toma e a velhinha, chorando, beija-o novamente. Liuxa chora mais alto e o pai o pega, levando-o dali. Ele procura a mãe, vê gente em torno, uns rindo, outros gritando, todos com os olhos brilhando. Afastam-se e o rumor vai diminuindo. Entram num bar; algumas vezes, nos passeios, o pai o leva ao bar, mas naquele ele nunca tinha estado. O pai pergunta o que você quer e ele sempre quer laranjada e sorvete. O moço de branco traz o sorvete e o pai fala que não tem refresco e Liuxa diz que agora quer fazer xixi. O moço aponta pro pai o lugar de fazer xixi e Liuxa acha engraçado o lugar do xixi, que é diferente dos outros. E enquanto Liuxa come sorvete, depois de voltar, o pai conversa com as pessoas da outra mesa. Daí que chegam a mãe e o tio e todos se sentam e pedem batata frita e Liuxa diz que também quer batata frita. A batata demora muito e a mãe ajuda Liuxa a comer o sorvete. Enfim chega a batata e o tio pega palitos e distribui e o pai põe sal. Liuxa quer mais palitos, a mãe retira o paliteiro, Liuxa quer mais sal, o pai apresenta o saleiro, a mãe diz que está quente, Liuxa joga sal na batata mas o sal cai na mãozinha e no palito e Liuxa lambe e faz uma careta e o tio ri bastante e ele come a batata e grita porque está quente e a mãe fala eu acabei de falar que está quente quer um pouco dágua? mas Liuxa quer o paliteiro e a mãe o traz novamente e ele tira cinco palitos e enfia um por um nas batatas e enfileira todas e começa a falar

fica frio-te sézamo, fica frio-te sézamo!

Conversam muito e não ouvem que Liuxa pede água. Ele puxa a roupa da mãe, ela zanga, eu quero água, o pai levanta o braço e chama o moço de branco. O moço chega e o pai dá dinheiro pra ele e o moço vai e volta com a água, Liuxa prova mas a sede já acabou e todos se levantam e vão pro carro do tio e Liuxa vê que as casas passam e passam e fica quietinho no colo da mãe e encostando o ouvido no peito dela escuta, quando ela fala, uma voz diferente que vem dum lugar igual à caverna do Ali Babá. Liuxa gosta que a mãe fale, pra rir com a voz que vem da caverna. As coisas vão ficando pequeninas e Liuxa desaparece.

Ao ser colocado na cama, cuidadosamente, Liuxa acorda. Levanta-se e começa a pular.

não quer dormir?, pipoquinha.

não. quero brincar com o Toicinho.

A mãe traz o Toicinho, um cocker spaniel mel e dourado. Liuxa dá gritos, pula e bate palmas. A vó entra cantando no quarto, perguntando se o docinho de amendoim gostou da festa? e dá muitos beijos em Liuxa e faz cócegas e a mãe entra e diz que mude de roupa e brinque com o Toicinho que eu vou sair com o pai e o tio.

eu também quero ir.

de noite você não entra.

O pai o pega no colo, para beijá-lo.

quando que eu entro?

de dia.

você me leva?

amanhã eu não posso. vou trabalhar. só no domingo.

e se você não trabalhar?

eu preciso trabalhar. todo mundo que já é grande precisa trabalhar. você sabe pra que é que eu trabalho?

sei. pra comprar coisas.

que coisas?

chocolate.

que mais?

balas.

que mais?

sorvete.

que mais?

doces.

Todos começam a rir. A mãe o tira do pai, o beija, ciao querido, entrega-o à vozinha que o abraça bem apertado e depois o põe no chão.

Liuxa brinca com o Toicinho, a vó liga a televisão e pergunta se ele quer ver as danças do povo polonês e Liuxa pergunta o que é povo e a avozinha responde cheia de amor, com a frase de uma peça do tempo da independência

povo é o mais velho herói do mundo.

Dando beijos, com os olhos brilhantes como os da velhinha da multidão, mas, desta vez, sem fazer cócegas.

Toicinho corre até a cozinha e Liuxa sai atrás dele, pulando, rindo e gritando. Toicinho deixa-o chegar bem perto, late, dá pulos e corre novamente ao quarto do menino. Liuxa corre atrás, a vó aumenta o som da antiga, antiquíssima polonaise que faz girar delirante toda a alma machucada de um povo finalmente livre. Toicinho sossega e deita, com a língua de fora. Liuxa, com o coraçãozinho batendo, confuso, com cores nos olhos e música nos ouvidos, com tontura na sua cabecinha mal preparada para festejos gloriosos de uma nação, agora neutra, Liuxa se deita, rindo, colocando a cabeça sobre o corpo de Toicinho, que continua com a língua de fora.

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