O homem não nasceu para morar em apartamento

A idiossincrasia pode ser um sentimento pernicioso, concordo. Por que, de todo o universo, haveria de acometer um modesto vivente do Hemisfério Sul, avançado em anos, e fazer brotar em sua cabeça uma idéia definitiva?  Ei-la: o homem não nasceu para morar em apartamento.

Não foi feito para isso, não está em sua natureza. Chega em casa mas não chega. Passa por um aparato de controle, que o espreita (ou cumprimenta, conforme o caso), de uma cabine envidraçada. E dirige-se para o embarque.

Chegou, mas tem que esperar condução! Uma vez embarcado, passa algum tempo encapsulado num cubículo semovente, de onde sai para exíguo hall, que, por cortesia ou ingenuidade, concordou ser decorado pelo vizinho em frente.

O vizinho aliou a volúpia do brilho de vitrine à facilidade do cartão de crédito, o que explica esse holofote sobre a sua cabeça. Mas você espeta a chave na fechadura da sua porta, gira e escapa. Afinal chegou em um ambiente que parece uma casa.

Mas não. Os cômodos estão lá, siameses, mas há os que não têm janela, como a cozinha (janela para lavanderia) e a sala de jantar e estar (porta para a varanda).

De resto, não sobra um centímetro de espaço além do croqui racionalizador. Não se pode fugir desse ambiente opressivo, como se estivéssemos em uma casa. Sair para esticar as pernas no quintal, tomar sol, colher uma fruta, atividade essencial para o bem-estar físico e mental do homem. Como não se pôde apreciar um canteiro de flores, à chegada, por falta de jardim.

Ora, direis, bilaqueanamente. Por que não deixa de viadagem e vai dar uma volta nos espaços abertos do térreo? Porque para andar sobre piso vitrificado e passar por jardim decorativo, vou passear no shopping (espere, não vou não).

Além do que, se for à noite, e eu espirrar mais alto, alguém pode se queixar ao síndico. Barulho fora de hora não pode, com exceção das noite de jogo da Seleção e do Corínthians.

O que digo é que o homem sempre morou em habitações baixas e livres, com o pé na rua. Quando o espaço escasseou, em conglomerados urbanos, buscou-se sua racionalização e surgiu o grande motivador: a especulação imobiliária!

Não digo que, em busca da pureza, retrocederia aos primórdios e iria morar em uma caverna. É chato, não tem wi-fi.

Janeiro de 2016

15 Comentários para “O homem não nasceu para morar em apartamento”

  1. Quase sucumbindo à tentação de morar num apartamento este texto me salvou de cometer este ato anti humano.

    Bem vinda seja Charlote, a cadela da vizinha, que sem qualquer cerimonia entra pela porta da cozinha, me cumprimenta com um latido, e espera ansiosa por um afago ou mimo comestível.

    Escuto o cantar diário, e fora de hora, de uma sabia que teima encher meu saco, enquanto rego a minha horta, e colho alguns quiabos.

    A chuva, em águas de verão, benfazeja cai molhando a terra e deixando no ar um cheiro característico. Minha vizinha, a dona da cadela, entra sem cerimonia na minha casa trazendo um cozido feito por ela mesmo, nossas casas não possuem muros de separação e as cozinhas se comunicam através de saborosos cardápios. Minhas janelas e portas ficam abertas à visitação, de quem quer que seja, bem vindo ou não.

    Molhar as plantas, mexer na horta, papear com vizinhos, tomar banho e lavar o carro com água da chuva. Cortar grama, pintar paredes e portas, lavar calçadas, colocar alpiste e milho picado para os diversos pássaros, na praça da alimentação, é trabalho que me toma tempo e me afasta do computador, das malditas planilhas e editor de textos que me acompanham desde muito tempo, cercados por paredes e espaços sem horizontes.
    Numa casa ver o céu, ver estrelas, sentir o sol, se torna obrigatório coisa que em apartamento chega-se a imaginar que não existam ou que nunca existiram.

    O apartamento é saudável para aqueles que gostam de manter esquizofrênica organização, tudo esquemático, tudo projetado, nada pode ser improvisado, até o peido soltado no lavabo, sem ventilação, deve receber a devida pulverização de cheiro de jasmim, ou outra fragrância da preferência da mulher, para se amenizar o odor confinado.

    Definitivamente num apartamento nunca poderei desfrutar do dizer popular: “meu reino meu lar, peidos para o ar”.

    Volta pra casa Valdir!

  2. Miltinho, brilhante sua crônica da vida real. Em que parte do paraíso fica sua casa? Descer daí para o confinamento em um apartamento, sem ter cometido crime e recebido pena de prisão, seria uma insanidade.
    Deixei minha casa porque era grande e tinha escada, problema principalmente para a Haydée. As paredes da rua, e toda a fachada da casa, eram cobertas por hera. Pé direito alto, sala com forro de madeira. Boa lareira, pequena adega escondida sob a sala de jantar. Escritório com cerca de 800 livros na estante. No entanto, acabamento singelo, rústico, sem massa corrida e piso que brilha.
    Quintal grande (para área urbana), com duas árvores e a copa das que estão na calçada.
    Ficou tudo lá. E estamos aqui.

  3. Valdir, abandonei meu apartamento em Curitiba, a cidade brasileira de primeiro mundo, e fui parar em Guapimirim pequena cidade do meu Rio querido, na subida da Serra dos Órgãos, casa plana, sem escadas (perigo na nossa idade). Adorei a descrição da sua casa e só consigo entender a troca em virtude da Haydée merecedora de algo mais prático, seguro e menos trabalhoso de manter. A massa corrida e o piso porcelanato impressionam aos olhos. Só de pensar no amigo descendo para o “play” em elevador ao lado de um vizinho soturno, que ao menos concede um “bom dia” gutural me faz repensar sobre uma volta a Curitiba. Manutenção, comodidade e praticidade não são tão importantes para nós apesar de assíduos leitores de bulas farmacopaicas. Precisamos de desafios, de viver. de xingar da martelada no dedo, do cocô do passarinho, da parede sempre desbotada, da goteira, da calha, do capim, de colocar colchões e cobertores para pegar sol, dos varais de roupas coloridas a secar.
    Sei não Valdir, uma casa transmite uma felicidade que só a tristeza de um apartamento pode fazer aquilatar.
    Quando quiser me ajudar nas tarefas descritas, minha casa tem um quarto para hóspedes, uma pequena adega onde podemos conseguir um bom e barato vinho, uma boa cozinha para fazer galinha com quiabo e polenta (angú).
    Venha quando quiser!

  4. Os apartamentos tornaram-se necessários em virtude da expansão urbana. Morar nas cidades, em casas urbanas, ou seja, no centro da cidade, no cosmos, era o desejável e o possível às populações da classe média dominante. As urbis possuíam espaços para construção de casas grandes e confortáveis e que abrigavam famílias inteiras compostas de pais, mães. filhos e os avós. As vezes tios e sobrinhos moravam na mesma casa. Morar em centro urbano era sinal de cidadania, elegância, conforto e prosperidade das famílias.
    A área urbana aos poucos se tornou insuficiente para conter o crescimento econômico e demográfico das sociedades. Os casarões foram dando espaço aos edifícios verticalizando as urbis e tornando mais caros os espaços. Com isto, os mais pobres, instintivamente se afastaram da zona urbana e foram edificar suas casas na zonas periféricas e próximas das cidades, os chamados subúrbios. Assim as classes sociais passaram a ser descritas através de novo conceito: urbano x suburbano. Ser urbano se tornou sinônimo de social, pacato, civilizado, culto, em resumo incluso. Os ‘suburbanos’ assim pejorativamente taxados, por viverem de forma contrária as aspirações e gostos da burguesia agora empilhada em condomínios de apartamentos.
    As casas passaram a ser destinadas e construídas nos subúrbios, onde novos costumes passaram a ser
    agregados, distintos e ridicularizados pela classe média ascendente, os hoje chamada ‘coxinhas’.

    Os edifícios se aproximam da periferia, e as casas se distanciam casa vez mais e hoje se encontram em pequenas cidades que ainda possuem hábitos suburbanos.

    Só quem tem raízes suburbanas vai entender o que é morar morar numa casa e a diferença em morar em apartamento, e reconhecer que ser urbano implica em mudanças dos hábitos suburbanos, exemplificados a seguir.

    1. “Mostrar a casa” quando chega uma visita.
    2. Ficar ofendido se alguém não mostra a casa quando você está visitando.
    3. Colocar toalhinhas de crochê debaixo dos bibelôs.
    4. Deixar os bancos do carro novo com o plástico.
    5. Ir ao bingo da igreja.
    6. E ganhar um frango.
    7. Refrescar-se com gelinho/sacolé/geladinho comprado na garagem da vizinha.
    8. Plantar espada de são jorge em latão de óleo vazio.
    9. Encomendar bolo na boleira da rua.
    10. E ela te entregar um bolo delicioso e lindo — exceto se você pedir no formato de um personagem de desenho. Neste caso, provavelmente sairá um Pikachu verde ou um Mickey com uma orelha menor que a outra (mas o bolo ainda vai estar uma delícia).
    11. “Fazer o cabelo” na cabeleireira da rua (que funciona na garagem).
    12. Usar bobs no cabelo.
    13. E um lenço por cima.
    14. Fazer um puxadinho.
    15. Saber o que é um puxadinho, aliás.
    16. Parcelar no carnê. Não no cartão, nem no boleto: no CARNÊ.
    17. Ter ímãs de geladeira de biscuit.
    18. Falar “não repara a bagunça”.
    19. Puxar um “é pique, é pique” depois do “parabéns”.
    20. Guardar os embrulhos dos presentes recebidos.
    21. Falar de doença com completos estranhos.
    22. Ter panos de prato com os dias da semana.
    23. E biquinhos de crochê.
    24. Guardar potinhos de margarina para colocar comida dentro.
    25. Pedir um ovo pra vizinha porque descobriu que tava faltando no meio da receita.
    26. Fechar saco de arroz e de açúcar com pregador de madeira.
    27. Juntar finzinho de sabonete.
    28. Colocar capa no botijão de gás.
    29. Colocar roupinha no liquidificador.
    30. Ter frutas de plástico na fruteira. Não de cera, de plástico MESMO.
    31. Ter uma cortina de tiras plásticas na porta da cozinha.
    32. Ter pesos de porta que nada mais são senão saquinhos de areia transmutados em bichinhos como sapos e tartarugas.
    33. Ter uma cortina de plástico no banheiro. E um rodo pra puxar a água que escapa.
    34. Ter um conjuntinho de tapete de pia, tapete de chuveiro e capinha para a tampa do vaso sanitário, tudo ORNANDO.
    35. Usar o verbo ORNANDO.
    36. Dar um jeito no desfiado da meia-calça com base de unha.
    37. Comprar produto de limpeza do caminhão que passa na rua.
    38. Usar pasta de brilho para arear a panela.
    39. Ler livrinhos de banca de jornal, tipo “Julia” e “Sabrina”.
    40. Pintar a rua na Copa.
    41. Calcular mentalmente quantos quilos de laranja dava pra comprar com o preço do suco no restaurante.
    42. Ter uma tampa de vaso sanitário COM UMA BORBOLETA DENTRO.
    43. Ter copos de requeijão. E dos **decorados**.
    44. Ter uma tia que encapa o controle remoto com magipack.
    45. Encapar você mesmo o controle remoto com magipack.
    46. Fazer pratinho no fim da festa.
    47. E cobrir com um guardanapo.
    48. Que invariavelmente vai grudar na cobertura (glacê) do bolo e deixar a mistura toda imprestável.
    49. Sair do subúrbio, mas não deixar jamais o subúrbio sair de você.
    50. Escrever na fachada: ‘Este é um lar’

  5. Miltinho, fui ao professor Google e descobri que você encontrou um “cantinho” nada desprezível para morar. Veja só Servaz, na Serra Verde Imperial, em município com 70% do território em área de preservação.
    Miltinho dirá que o Imperial refere-se a D. Pedro II. Mas, mesmo assim, não é chique, coisa de coxinha?
    Novamente gostei muito do seu texto, Miltinho, e achei divertida a cortina de fumaça de cinquenta pontos que você costura para tentar passar intimidade com o subúrbio, e disfarçar sua real situação!
    Se pudesse, aproveitaria seu amável e tentador convite e iria ao local fazer uma perícia. Mas está difícil…
    Você esqueceu de um ponto: tapetinho de sisal na porta com o Seja Bem-vindo.

  6. Há dias nosso grande Luiz Carlos citou o filme !O último drive in” segue a nota:

    LUIZ CARLOS

    Postado em 25/11/2015 às 3:28 am | Permalink
    Se o Xexéo quiser matar a saudade, Brasília tem o último cine drive-in em funcionamento no Brasil. Foi inaugurado em 1973, tem capacidade para 500 carros e uma tela de projeção gigantesca, de 312 m2. Quem desejar algum lanche ou bebida, mesmo alcoólica, basta piscar o farol do carro, que aparece um garçom para atender os pedidos. Fica localizado na parte central da cidade, próximo ao estádio Mané Garrincha. Atualmente recebe cerca de 200 espectadores por dia e recentemente foi tema do longa O Ultimo Cine Drive-in, do diretor Iberê Carvalho. Premiado no festival de Gramado, o filme conta a história do jovem Marlombrando e seu pai, que lutam para manter vivo o cine, apesar da falta de público e da ameaça de demolicão. Por se tratar de uma história de amor ao cinema e apresentar o Drive-in para quem não conheceu, bem que merecia a atenção do 50 Anos de Filmes.

    Foi exortado pelo Sérvaz para fazer uma sinopose, porém não o fez.

    Pois bem surge nova chance: DIA 26/01/2016 ÀS 22:00 NA TV – CANAL BRASIL
    Seleção Brasileira – Filme Do Mês Último Cine Drive-In,
    O Marlombrando volta à Brasília devido à doença de sua mãe. Lá, ele vai reencontrar seu pai, Almeida, que insiste em manter vivo o seu Cine Drive-in, mesmo não atraindo mais tantos espectadores.

    A bola volta para o Luiz!

  7. Teria muito a comentar, mas continuo em Maceió, sem smartphone. O meu,
    como vocês sabem, se jogou no balde de gelo do vinho, no restaurante Palato. Era bem tratado e não tinha motivos para o suicídio. Foi a bebida. Como aqui não tem nanochip 061, de Brasília, continuo sem um celular decente para escrever. Minha mulher teve que ir a Brasília e talvez consiga comprar, por procuração, um nanochip com meu número. Acompanho com atenção os argumentos a favor da casa.

  8. ..Miltinho,brincadeiras à parte, entrei no Google Imagens e fiquei deslumbrado com Guapimirim. Natureza pródiga, o Dedo de Deus. Tem até estação de trem que, imagino, está desativada. Vi cenas da cidade, muito bonita.
    ..Luiz Carlos, Miltinho está convidando para estada nas terras dele, boca livre. Vamos nessa?

  9. Valdir, Guapimirim é muito mais e o trem não foi desativado ainda. É o paraíso que os ‘coxinhas’ usam em finais de semana. Eu desfruto a semana inteira e me nego ir até ao Rio (60 km), mesmo para ver o Flamengo jogar.
    Seria uma boa ideia, reunirmos eu, você, Luiz e Servaz. Não vai faltar álcool e por segurança deixaremos os celulares em lugar seguro. A casa não tem escadas sem perigo para sexagenários.
    Não deixem de assistir dia 26 no Canal Brasil ao filme ‘O Último Drive in’ com a futura sinopse do Luiz Toledo.

  10. Miltinho, a dica é ótima, e já anotei na minha agenda cultural, digo, caderninho. Vou ao filme.
    Luiz Carlos, lembro de ter lido seu texto sobre o cine drive in, excelente. Agora você demonstra ter boa veia para o realismo fantástico, poderia escrever excelente obra sobre um smartphone habituée do restaurante Palato que escorrega, cai no balde de gelo, e está em vias de fazer um transplante de nanochip (o professor Zerbini deve estar se revirando no túmulo).
    Miltinho – Seria muito bom nos reunirmos na sua casa, mas é mesmo muito difícil. Se eu estivesse no Jornal da Tarde dos bons tempos, amanhã estaria aí com fotógrafo para fazer a matéria sobre o trem.

  11. O Parque Nacional da Serra dos Órgãos, com suas cachoeiras, piscinas naturais, trilhas e áreas para piqueniques, atrai desde aqueles que buscam relaxar até os mais aventureiros. De fácil acesso, o Mirante do Soberbo tem uma das vistas mais impressionantes da região, incluindo o pico Dedo de Deus.

    Os turistas de perfil mais radical encaram três dias de caminhada na travessia Teresópolis-Petrópolis, com cachoeiras, vegetação e paisagem que recompensam o sacrifício. A Pedra do Sino também é muito procurada por grupos que acampam para apreciar o nascer do sol.

    O visitante pode simplesmente contemplar a natureza ou partir para uma aventura mais radical, descer de rapel a cachoeira do Garrafão e mergulhar no Poço Verde Sem Fundo.

    Há espaço para todos os gostos e idades.
    Mas o que ainda poucos sabem é que nas Montanhas do Rio de Janeiro, na
    Serra Verde Imperial, é que são produzidas uma rica diversidade de estilos de cervejas. Entre as boas novidades estão a Vila St. Gallen, complexo cervejeiro que marca a velha burguesia e a nova dos coxinhas.

    Vale a pena fazer uma visita nesse cantinho do Brasil ainda pouco explorado e com muito a oferecer.
    http://www.camaradeguapimirim.rj.gov.br/galerias/foto_arq.htm

    Saída do trem de Guapimirim rumo a Saracuruna … supervia trem locomotiva no
    bagaço triste realidade de quem precisa desse serviço …
    https://www.youtube.com/watch?v=vAKT9hpsGng

    TREM = Sentido Saracuruna – 04:00 / 07:30 / 11:00 / 16:40

    Uma pena Valdir você não estar no JT, Guapimirim vai ficar sem seu texto, pode ser no entanto que Haydeé te convença a realizar aqui, a lua de mel de quinta núpcias.

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