Como um bêbado em um coral da meia-noite

zzzzcohen

Como um pássaro na gaiola, como um bêbado em um coral da meia-noite, eu tentei, do meu jeito, ser livre.

Não sei dizer com absoluta certeza quando e com quem foi que ouvi pela primeira vez esses versos absurdamente belos de Leonard Cohen. Posso dizer, no entanto, com toda certeza, que foi bem antes de Mary entrar na minha vida feito uma posseira, para usar a imagem de outro grande poeta, Chico Buarque. E, como Mary entrou feito posseira já lá se vão 25 anos – um quarto de século, como diz Leslie-Liz Taylor para Bick Benedict-Rock Hudson, ao final de Giant, Assim Caminha a Humanidade –, então os versos de “Bird on the wire” me encantaram pela primeira vez, olha, um porrilhão de tempo atrás.

Como uma minhoca num anzol, como um cavalheiro em um algum livro muito antigo, eu salvei todas as fitas de cabelo para você.

Como um bebê nascido morto, como um uma besta com seu chifre, arrebentei cada um que tentou chegar perto de mim.

zzzzbird01Acho que tenho uma pista. Creio que foi com Rita Coolidge que ouvi pela primeira vez “Bird on a Wire”. Ela gravou a canção no disco The Lady’s Not For Sale, de 1972.

Que eu saiba, a primeira a gravar uma canção de Cohen foi Judy Collins, a maravilhosa cantora folk que tinha antenas feito as de Nara Leão, e foi a primeira gravar um monte de gente. Gravou “Suzanne” e “Dress Reharsal Rag” ainda em 1966, no seu álbum In My Life – em que cantava, suavemente, a canção daqueles ingleses meio barulhentos de Liverpool.

Judy Collins gravaria “Bird on the wire” no seu disco de 1968, Who Knows Where the Times Goes – mas eu só viria a conhecer esse disco muito mais tarde. (Aqui há um vídeo com Judy Collins cantando a música.)

Naqueles anos 1960, 1970, Joan Baez disputava com Judy Collins o troféu Antenas. As duas tinham o mesmo tipo de gosto pelas canções folk,  tinham o mesmo dom divino da voz impecável, maravilhosa. Joan gravou Dylan primeiro, Judy gravou Cohen primeiro. Joan gravou “Suzanne”, de Cohen, em 1976. Não consigo ver quando foi que ela, finalmente, gravou “Bird on a wire”.

Mas não é a precedência, quem gravou primeiro, que importa.

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O fato é que muita gente boa, de origens tão diversas, gravou a canção estupidamente bela de Leonard Cohen: Johnny Cash, k. d. lang, Madeleine Peyroux, Tim Hardin, Willie Nelson. Kate Wolf, a grande, maravilhosa Kate Wolf. A relação não iria parar jamais.

A ligação pessoal forte é que “Bird on a wire” foi a primeira canção de Leonard Cohen que ouvi, que me deixou deslumbrado, e me fez ir atrás das outras coisas dele.

zzzzzzcohen1É fascinante, penso agora: comecei a admirar Leonard Cohen ainda na era Suely; virou paixão profunda na era Regina – ouvi muito os versos “where, where is my gypsy wife tonight?” de noitão, enquanto me perguntava a mesma coisa, embora eu também fosse um gypsy husband que passava muito tempo fora.

Injetei Leonard Cohen na veia de Mary, e ela, como tem bom gosto e absolutamente nenhum ciúme do passado, como deve ser, e como não são os personagens das canções do bardo, bem, ela se apaixonou por ele. A ponto de viajar até a Irlanda para ver um show dele (na foto), com a amiga Andrea – eu em casa, atado à minha bola de ferro no pé.

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De uma certa maneira, “Bird on a wire” está para Leonard Cohen como, digamos, “Blowin’ in the Wind” para Bob Dylan, “The Sound of Silence” para Paul Simon, ou, pior ainda, “Grândola, Vila Morena”, para Zeca Afonso. A Primeira Grande Canção. A Primeira Grande Canção o público jamais esquece, e sempre pede bis, por mais que o pobre do criador esteja exausto da criatura.

Dylan ainda canta “Blowin’ in the Wind”, Simon ainda canta “The Sound of Silence”. Pouco antes de morrer, já muito doente, Zeca Afonso reclamava para o público que lotava o Coliseu de Lisboa: “Bem! Como anunciado, vamos cantar aquela novíssima canção, muito recente, chamada ‘Grândola, Vila Morena’.” Ele fala essa frase puto, mas muito puto da vida.

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Leonard Cohen, pelo jeito, não tem contra sua Primeira Grande Canção esse horror que Zeca Afonso tinha pelo seu maior sucesso. Faz sentido: “Bird on a wire” é uma canção que pode ser absolutamente amada por amantes de todas as cores, todos os credos, todas as opções, mas é apenas e tão somente uma maravilhosa canção de amor. Não teve o duro destino de – não importando a própria vontade do autor – virar hino revolucionário.

zzzzzzconhen5E então Leonard Cohen canta e canta e canta de novo a canção com que abriu seu segundo disco, Songs from a Room, de 1969. A cada novo disco ao vivo, lá em vem mais uma regravação de “Bird on the wire” – e, filho da mãe, cada uma é mais bela que a anterior.

Se Leonard Cohen não tivesse feito mais nada, a partir do lançamento desse seu segundo disco, já seria um dos maiores cantautores do século XX.

Continuou fazendo belos discos, sem parar.

Para talvez tristeza dele, e felicidade geral de todas as nações, descobriu, já septuagenário, que havia sido roubado pela própria agente. Estava duro como… Ah, perdão pela baixaria, mas como o arco sempre teso – para usar a imagem de um outro poeta, Caetano – de um tarado. (E ele é bastante tarado mesmo.) E aí teve que fazer mais e mais turnês, e mais e mais novos discos.

Mary, que não é boba nem nada, viu o show dele em Dublin em 2013. E, pelo que ela viu, ele não tem absolutamente nada a ver com a preguiça com que Dylan faz sua Never Ending Tour, ou com que Zeca Afonso faz o último show da sua vida no Coliseu de Lisboa abarrotado.

Não, não, ladies and gentlemen: Leonard Cohen, oitentinha anos em 2014, gosta desse negócio de subir no palco e cantar. Está muito mais para Paul McCartney e Bruce Springsteen do que para Dylan ou Zeca Afonso. Em Dublin, diante da minha mulher e da minha amiga Andrea, cantou por quase três horas.

Claro, cantou “Bird on a wire”.

***

Leonard Cohen tem uma característica que me faz lembar Bituca. Um não tem nada a ver com o outro, a não ser que são maravilhosos, mas, para além de todas as suas diferenças, uma coisa os une: músicos excepcionais fazem questão de estar perto deles.

zzzzzzcohen6Os melhores músicos acompanharam Bituca e Leonard Cohen ao longo de suas carreiras. Cohen, além dos instrumentistas, ainda contou sempre com as melhores backing vocals do pedaço. Cantoras extraordinárias, que tinham, tiveram ou poderiam ter tido carreiras solos invejáveis, emprestaram a beleza de suas vozes para harmonizar com o vozeirão cheio de cigarro, velhice e tristeza do bardo.

Jennifer Warnes. Sharon Robinson. Anjani Thomas.

Vozes maravilhosas. Mulheres maravilhosas.

Será que alguma delas escapou do lado Casanova do cara? Bem, isso não importa.

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É possível dizer que há algum verso mais belo que o outro, em “Bird on a wire”?

É um poema de 1968, por aí, o auge da época em que achávamos que poderíamos mudar o mundo com nossa boa vontade, nosso amor.

Há versos que apontam para a apavorante tendência – tão denunciada pelas canções brasileiras anti-ditadura – de que quem tem pouco não deseja muito, e quem tem muito deseja tudo:

Vi um mendigo se inclinando sobre sua bengala dizendo para mim: ‘Você não deveria pedir tanto!’. E uma bela mulher, se encostando na sua porta, dizia para mim: ‘Ei, por que não pedir por mais?’

Como todos nós que erramos, ele pede permissão para tentar de novo e aí, quem sabe?, acertar:

 Mas eu juro por esta canção, e por tudo o que eu fiz de errado, que vou corrigir as coisas por você.

Todos, absolutamente todos os versos de “Bird on a wire” são majestosamente belos.

Eu, que pisei em tantos tomateiros ao longo da vida, gosto especialmente do momento em que ele demonstra que, no passado, pisou no tomateiro.

Like a bird on the wire,

Like a drunk in a midnight choir

I have tried in my way to be free.

Tentei com tanto empenho que acho que consegui.

Minha amiga Miryam Lúcia foi quem – mais do que ninguém – notou. Lá de longe, reparou, e me disse alguma coisa do tipo: “Você conseguiu, você traçou seu plano, você fez o que queria.”

Like a bird on a wire.

Verdade, verdade. Like a bird on a wire, Like a drunk in a midnight choir, I have tried in my own way to be free.

Às vezes acho que consegui. Estou aqui, like a drunken in a midnight choir, cantando minhas canções desafinadas. O som pode não ser muito belo, mas gosto de fazê-lo. De juntar palavra com palavra num desenho que para mim tem alguma lógica.

Junho, julho de 2015

(So long, Leonard – um texto sob a emoção da perda do bardo.)

Bird on a wire

Leonard Cohen

Like a bird on the wire,

Like a drunk in a midnight choir

I have tried in my way to be free.

Like a worm on a hook,

Like a knight from some old fashioned book

I have saved all my ribbons for thee.

If I, if I have been unkind,

I hope that you can just let it go by.

If I, if I have been untrue

I hope you know it was never to you.

 

Like a baby, stillborn,

Like a beast with his horn

I have torn everyone who reached out for me.

But I swear by this song

And by all that I have done wrong

I will make it all up to thee.

I saw a beggar leaning on his wooden crutch,

He said to me, “You must not ask for so much.”

And a pretty woman leaning in her darkened door,

She cried to me, “Hey, why not ask for more?”

 

Oh like a bird on the wire,

Like a drunk in a midnight choir have tried in my way to be free. 

3 Comentários para “Como um bêbado em um coral da meia-noite”

  1. Boa semana, SERVAZ nao só reproduz, mas cria textos lindos e humanos. Temáticos e autobiográficos reproduzem brilhantemente momentos marcantes da sua vida e que também sào marcantes em vidas outras.
    Tenho impressào que há 26 anos atrás ele pendia a esquerda, hoje manifestamente à direita, tenta ser livre como uma minhoca no anzol.

  2. Não me vejo pendendo para a direita, Miltinho, de jeito nenhum. Acho que estou pendendo é rigorosamente para o centro, que é onde fica o bom senso.
    Um abraço!
    Sérgio

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