Leio na cama, mas os olhos fecham-se como antes não se fechavam. Há dias, abri Aquele Grande Rio Eufrates, do poeta Ruy Belo. Lia o sublime “Elogio da Amada”, e no verso “a amada é bem a infância que vem ter comigo” já eu dormia como um bebé.
Acordou-me o estrépito do helicóptero de The Deer Hunter, vinham Robert De Niro, Christopher Walken e John Savage agarrados ao estribo, o ameaçador rio lamacento em baixo. Eu continuava sentado na cama, Ruy Belo na mão. Levantei-me de um salto – ainda me levanto de um salto. Um helicóptero, três boinas verdes e um rio é muita fruta, mesmo para a minha cama gigante.
Não devia ter sido essa a imagem de The Deer Hunter a acordar-me. Jantara com amigos do peito. Um deles é comunista, e para desenjoar da paradisíaca Coreia do Norte em que, enervados, sempre nos atulhamos, lembrámo-nos de contar o mais genuíno momento de surpresa e êxtase das nossas vidas.
Desenrolámos paisagens: houve uma estrelada noite no deserto, um vermelho crepúsculo africano e até a lírica brancura do Pólo Norte. Eu, como aqueles amigos sabem, não tenho vida. O que evoco vem de filmes ou livros. Ora, há duas caçadas de The Deer Hunter que são cenas da minha vida. Admiro-lhes a filosofia do “One shot! Two shots is pussy” (traduzo, não traduzo? Olha, não traduzo). São cenas simétricas: na primeira De Niro, um só tiro, mata o veado; na segunda renuncia ao seu “one shot” e funde-se com a Natureza.
Em 74, ainda De Niro não sonhava com veados, acabava eu a recruta, no Huambo. Acampámos no mato três dias. Numa manhã, fomos em patrulha pelo trilho da mata e progredimos para uma imensa clareira de verdíssimo capim, que nos batia pela cintura. Estávamos ao colo da primeira, mais bela hora da manhã. Na clareira, os nossos olhos deram com os olhos do veado de De Niro. Era um antílope imponente, um digno e alto par de cornos a rasgar a linha de horizonte. Na doçura daquela luz, a sua fronte era humaníssima, era a fronte de Deus. Sem temor, Deus olhou-nos, virou-se, bateu os cascos e foi-se. As G 3 tremiam nas nossas mãos de soldados de 20 anos.
Sei que essa visão mística me foi dada apenas para, anos depois, ao ver The Deer Hunter, poder saborear o gosto da redenção de De Niro, a renúncia à filosofia de um só tiro. Diga-se: as nossas G 3 de recrutas não tinham balas. O majestoso par de cornos de Deus nunca esteve em perigo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Deer Hunter no Brasil é O Franco-Atirador.