Se lá estivesse o Al Pacino de Serpico, não seria melhor. Na 5ª Avenida, à boca do metro, montara-se o inferno. Povo, polícia, o circo da televisão. Bandidos em fuga tinham reféns os passageiros do metro. Cortou-se o trânsito, fechou-se o metro. Esperava-se o som e a fúria das metralhadoras dos NYPD blues.
De viagem, o Emídio Rangel e eu ficámos a ver. Deu-lhe uma ideia maluca: “Eh pá, estes tipos não têm segurança nenhuma. Vamos atrás de uma câmara ver a caldeirada lá em baixo.” Fomos. Polícias em posição de tiro cercavam o comboio. Afinal, perseguiam três carteiristas e faltava apanhar um, escondido numa carruagem. Mas o nabo de um polícia dera um tiro no próprio pé e o obrigatório código de officer down fez vir carros, cães, metralhadoras e a forma prosaica de cinema chamada televisão.
Havia um ferido, uma mulher a sangrar. De saltos agulha, espetara-se-lhe um no calcanhar, como ali nos mostrou e, no dia seguinte, lemos, certinho, no NY Times. Fomos embora para a má vida que é ouvir jazz e comer um bife no Blue Note.
Às três da matina, no quarto, deu-me uma taquicardia. O hotel chamou a ambulância. Telefonei a avisar o Emídio: “Não venhas, isto é a América, não te deixam entrar no hospital…” Veio na mesma, companheiro e voluntarioso. Às urgências, cheguei eu e chegou o chefe de um gang negro com uma naifa na barriga. Um inócuo polícia branco de um lado, um polícia negro de 200 quilos do outro. O chefe do gang só berrava palavras com efe, de fuck you a motherfucker, um esganiçado son of a bitch. O polícia negro sentava-lhe os 200 quilos no peito e calava-o. A minha médica, brasileira menina, disse-me que estava o gang todo na sala de espera. Temi pelo Emídio e implorei-lhe que, à luso-brasileira, fosse resgatá-lo. O Emídio veio a rir-se. Por ter dormido com outra miúda, o chefe do gang fora esfaqueado pela namorada. Lá fora, arrepelavam-se e tentavam matar-se as duas, com 20 tipos a separá-las. Dez minutos depois, já o Emídio sussurrava a sua sedutora hipocondria ao clínico ouvido da médica, e eu ali, numa cama de hospital, sem ninguém a ligar à minha taquicardia.
Digam lá se Nova Iorque – acção, comédia e melodrama – não é a mais cinematográfica cidade do mundo.
PS — Para a Ana Rangel. Pelo que o Emídio me divertiu, pelo que eu o diverti. Com pena de não termos voltado a falar.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia