Conheci ainda na infância uma fazenda, a Santa Olímpia, ligada à vila de Guatapará por uma estrada margeada pela mata fechada. Nela, ao passar por uma clareira dava ainda para a gente ver as marcas do primeiro cemitério da região. Por causa dele ninguém se aventurava a andar por ali à noite, pois os mais velhos contavam que nas chamadas horas mortas as almas saiam ao relento acompanhadas dos esturros de uma onça pintada.
Eu andava lá pelos dez anos quando veio trabalhar com meu pai um baiano de nome Salvador, sobrenome Divino, papudo e contador de prosa, desses sujeitos que fazem questão de se arvorar como valentões, sem medo de nada. Mas era um bom caráter, honesto, trabalhador, prestativo, que logo foi conquistando a todos.
Com o passar do tempo minha mãe, que sabia ler bem a alma humana, percebeu em Salvador uma sombra de tristeza. Vivia meio acabrunhado, esgueirando pelos cantos, como se o enfado o estivesse consumindo. Com jeito e uma boa conversa descobriu o motivo: gostava de dançar e desde que chegara não pudera ir a nenhum baile porque roupa decente não tinha. Por isso, não! Mandou que procurasse Benedito Ferreira da Silva, o compadre Caboclo, padrinho de minha irmã Maria Regina, tirasse as medidas, deixasse nas mãos dele e não se preocupasse com o pagamento.
Duas semanas depois o terno chegou. De cambraia, tecido da moda. No primeiro sábado meu pai pagou-lhe a semana e recomendou que se fosse ao baile na Santa Olímpia, famosa também por seu salão de dança, evitasse a estrada nas horas mortas, pois a fera do cemitério não era coisa de se enfrentar na madrugada. Que não se preocupasse, patrão, afinal seu nome era Divino Salvador. Para mostrar toda a sua confiança, bateu no cabo de madrepérola do inseparável punhal que levava na cintura.
Para encurtar a história, Salvador saiu vestido nos trinques, elegante, bem disposto. Pouco antes das 7 da noite já havia percorrido os quatro quilômetros de estrada e entrava na venda de seu Terêncio, parada obrigatória dos que chegavam à Santa Olímpia. Aceitou o convite para umas rodadas de truco e ali ficou, bebericando algumas doses de cagibrina, à espera da primeira dança.
Dançou o resto da noite e entrou pela madrugada esbanjando seus passos. Flertou com suas damas, marcou encontros futuros e lá pelas duas, quando o baile acabou, tratou de pegar o rumo de casa. Feliz e satisfeito por matar a saudade e espantar o aperreio que o seguira por tanto tempo.
Ao dar os primeiros passos sobre e terra massapé olhou para o céu e sorriu para a lua cheia pendurada num mar de prata, carregado de estrelas e sem qualquer nuvem. O luar era tão esplendoroso que parecia transformar a noite em pleno dia, facilitando sua jornada. E lá se foi, ploct-ploct, ploct-ploct, estrada afora. Quando chegou nas proximidades do cemitério, sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha de alto a baixo. Lá na frente, a uns 200 metros de lonjura, um vulto se postava bem no meio da estrada, imóvel, indefinido, o que tornava impossível saber exatamente o que ou quem era. Percebeu então que, depois de tanto vangloriar-se da sua valentia, chegara a hora de a onça beber água.
Manteve os passos firmes e ritmados, foi indo, foi indo, foi chegando, foi chegando, até que, ajudado por uma nesga de claridade que a lua vazava entre as árvores, estacou e viu em que encrenca se metera. Era uma onça pintada, enorme, parruda com jeito de quem estava à espera do jantar. E agora? Correr era pior, então só um jeito: enfrentar o bicho e ver que bicho dava.
Baixou os santos, esgazeou os olhos, foi tomado por um acesso de loucura, sacou o punhal e partiu para cima do felino feito o demo. Atracou-se com a pintada e entre urros e mordidas arrancou-lhe um pedaço da orelha e esperou pelo pior. A verdade é que até hoje não se sabe quem ficou com mais medo: ele ou a onça. Quando escapuliu, ela se recompôs, aguentou-se nas patas traseiras, saltou longe, disparou para a franja da mata, atravessou um pequeno riacho, parou, voltou-se para Salvador, olhou bem nos seus olhos, espantada com aquela assombração, arriou a cabeçorra, bebeu um gole d’água e desapareceu entre as moitas de gabirobas.
Se tudo o que ele contou foi verdade ou não, o fato é que Salvador mandou costurar o naco da orelha da pintada num pedado de pano. Dali em diante passou a andar com ele pendurado no peito, feito um patuá, símbolo da sua valentia.
Nem é preciso dizer que ele virou herói e desde então ninguém mais teve medo de ir aos bailes da Santa Olímpia e voltar de madrugada. Afinal, jamais se viu a tal onça, que se escafedeu. Garantiu certa vez um pescador que a encontrara bem longe dali, na beira do rio, mas bem acima, a quilômetros de distância. Como sabia? Fácil. Na orelha direita lhe faltava um naco…
O autor é jornalista em Roraima.
Por acaso, essa fazenda Santa Olímpia, perto de Guatapará, é no interior de São Paulo? Minha bisavó morou lá quando veio da Espanha com a família para trabalhar na fazenda de café….. Estou procurando fotos dessa fazenda….
Olá, Alessandra!
Eis aí a resposta do Plínio Vicente, o autor do texto que citava a Fazenda Santa Olímpia.
Não sei se ele já enviou diretamente para você. Assim, na dúvida, achei melhor repassar para você. De qualquer maneira, o Plínio deixou todos os contatos dele aí.
Espero que isso ajude você, Alessandra.
Um abraço.
Sérgio