O ouvido fino do meu pai

zzzzladri

Sean Con­nery pai ou Har­ri­son Ford filho guiam com estilo a moto e side­car de Indi­ana Jones. Deviam ver-te, pai, a ras­ga­res, na tua BSA, ao sol e à brisa dessa Angola que era e não era nossa. Levavas-me ao Liceu, ao Morro da Lua, à pesca ao Cacu­aco. E agora? Não sei por onde andas, pai.

Bem sabes – disse-to aos quinze anos para dei­xar de ir à missa – que no céu tenho pouca con­fi­ança. Tal­vez sejas, como no 2001 do Kubrick, um grão de poeira cós­mica. Tal­vez vivas num mul­ti­verso. Ou tal­vez sejas ape­nas a folha de plá­tano que o vento aca­ri­cia. E uma folha de plá­tano parece-me boa esco­lha – a que tu farias. Sabias tudo das árvo­res, das tuas maci­ei­ras e perei­ras, das oli­vei­ras dos teus oli­vais. Sabias podá-las, tra­tar de videi­ras, plan­tar uma horta. A Natu­reza, mundo hos­til de bichos e ervas, de Verões, cacimbo e chuva, a Natu­reza con­fi­ava em ti, confidenciava-te coi­sas que nunca con­se­gui ouvir. O ouvido fino que tinhas, pai, e falavas-lhe tão bai­xi­nho, um mur­mú­rio que punha um pomar em brasa.

Antes do cinema, foste o meu cinema. Ainda não vira o Ladrão de Bici­cle­tas e já te tinha visto numa pas­te­leira igual à do pai herói que o De Sica filma, as mes­mas cal­ças lar­gas, o mesmo casaco entre o cam­po­nês e o urbano, um rosto muito mais sor­ri­dente. Em noi­tes a que o mus­se­que ao lado punha doçu­ras de catinga e man­di­oca assada, contavas-me que essa fora a bici­cleta do exí­guo Por­tu­gal de que fugiste para sacu­dir um des­tino sem pro­messa nem conquista.

Ainda Roberto Benigni não sonhara A Vida é Bela e já as tuas mãos eram capa­zes de fin­gir, para mim e para a minha irmã, um tea­tro que apa­gasse a escas­sez do insa­tis­fa­tó­rio mundo real: os teus dedos tão depressa dan­ça­vam no ban­do­lim que trou­xe­ras dos bai­les da Metró­pole, como segu­ra­vam uma plaina, serra e mar­telo, para nos dares os pri­mei­ros brin­que­dos, um camião de madeira, o arco atrás do qual cor­riam os meus cinco anos.

Vol­tei, como aos cinco anos, a ter medo do fim do mundo. Tivesse ao pé de mim as tuas artes de sobre­vi­vên­cia e eu seria o miúdo de A Estrada, do Cor­mack McCarthy, sem medo da huma­ni­dade em ester­tor à volta. Diz-me, se te cons­truir um campo de fute­bol, como o Kevin Cost­ner faz no Field of Dre­ams, tu vol­tas? Jogas comigo?

P.S.: A mãe ainda está con­nosco. Mal nos ouve e quase não fala. Está con­nosco e, bem vemos, é só con­tigo que ela que­ria estar.

zzzzindiana

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordteo com a antiga ortografia.

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