“Os olhos de ambos erravam por sobre os montões de pedra das construções, sobre a água repugnante do canal, onde flutuava um molho de palha ,sobre a chaminé de uma fábrica, que se erguia um horizonte; os esgotos exalavam miasmas”.
Este é um trecho de Bouvard e Pecuchet, o último romance de Gustave Flaubert, onde ele satiriza a vida de dois medíocres pequenos burgueses franceses que abandonam a sua vida de pequenos funcionários urbanos e saem em busca da prática da idiotia rural, como a definiu Karl Marx em um de seus escritos.
Ao mesmo tempo em que “os esgotos exalavam miasmas”, Milan Kundera, o escritor checo, achava que Flaubert sustentava toda a sua obra no tema da idiotia e da tolice, o que sustentava a tese de que os idiotas herdariam a terra.
Kundera, citado no blog Contramaré, de Aguinaldo Munhoz, dizia que “a descoberta flaubertiana é mais importante para o futuro da humanidade que as idéias mais perturbadoras de Marx ou de Freud”. Pois podemos imaginar o futuro do mundo — prossegue Kundera — sem a luta de classes ou sem a psicanálise, mas não a invasão irresistível das idéias feitas, estandardizadas, pasteurizadas, que, “inscritas nos computadores, propagadas pela mídia, ameaçam tornar-se em breve uma força que esmagará todo o pensamento original e individual e sufocará assim a própria essência da cultura européia dos Tempos Modernos”.
Nem Kundera e muito menos Flaubert poderiam imaginar que essa onda se tornasse tão avassaladora e se multiplicasse numa velocidade tão inimaginável com a democratização do acesso às redes sociais e que “a invasão irresistível das idéias feitas” pudesse ser tão demolidora e provocasse efeitos tão danosos em tão curto espaço de tempo histórico.
A idéia de uma professora chamada Patrícia Secco de escrever uma edição “facilitada” de Machado de Assis para que ele seja entendido por todo mundo (quem lembra da “Edição Maravilhosa”, uma revista que reduzia clássicos da literatura a histórias em quadrinhos, para mentes infantis? ), é uma versão daquele miasma que exala do esgoto de Bouvard e Pecuchet ou um sinal do zeitgeist — o espírito do tempo — ou as duas coisas juntas?
A campanha que demoniza a expressão “meritocracia” como uma maquiavélica armadilha neoliberal e não como uma forma de reconhecimento de uma capacidade especial digna de recompensa de uma pessoa que se destaque, por esforço próprio, em qualquer área de atuação, não é um sintoma de que os idiotas estão herdando a terra numa velocidade assustadora?
O miasma do esgoto não exala apenas das fontes convencionais — a corrupção política, o desrespeito à democracia, a agressão aos direitos das minorias, a desastrosa administração pública —; ele sai também das mentes de quem se esperava produção de conhecimento, e não a sua destruição sistemática.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 9/5/2014.
Parabéns ao Vaia. Sou um idiota, mas não herdeiro da terra.
Os donos da terra, do ar, da água, de tudo enfim são os “meritocratas” uma nova classe social que democraticamene minimizam os direitos fundamentais de uma maioria a quem consideram idiotas ou imbecis úteis.
Imbecis que trabalhan, vivem, produzem,votam, mas sem a meritória competência, estas definidas como virtude dos jornalistas, dos juristas, dos doutores, dos políticos, dos menos médicos. Virtuoses que estabelecem uma distinção entre o público e o privado, reservando-se as benesses do privado e beneficiando-se do que deveria ser público.