Andou pé-ante-pé no silêncio da madrugada, fios de claridade vazando pelas frestas da janela. Cuidou de não acordar a mãe, rosto marcado pela dor que povoava seu sono. Parou ao lado da cômoda onde uma solitária rosa, temporã florescida no inverno daquele junho, consumia um resto de vida alimentada pela água fria na caneca de ágata. Era a derradeira lembrança da irmã. Sorriu um meio sorriso de tristeza e saiu para cumprir a missão.
Em passos firmes e decididos na trilha estreita, o orvalho subindo-lhe pelas pernas, atravessou a cerca de arame e entrou na olaria pelos fundos, escondido do homem que lidava na limpeza da pipa. Era inda quase um estranho, recém-chegado, de quase nenhuma experiência. O pouco que trazia acumulara na vida que passara capinando café nas fazendas da região. Por isso não se deu conta de que atrelara antes, imprudentemente, a parelha de mulas no varal do travessão e entrou na caixa para retirar o entulho das facas, presas ao poste, que, ao virar, amassava o barro para os milhares de tijolos que nasciam das mãos hábeis dos oleiros.
Lá em cima, a cidade iluminada começava a apagar suas lâmpadas com o clarão do sol a crescer no horizonte da manhã. O rapaz esgueirou-se por entre gambetas e, tão silente quanto chegou, procurou no telhado de sapé do rancho o arco e o embornal de bolotas, guardados na véspera. Tinha na alma o gosto amargo da vingança. Na lembrança, o rosto da irmã, as águas do rio e as marcas na areia, coisa de três dias, que só ele vira, rabiscos de poucas palavras apontando um nome e as razões do suicídio.
Escolheu uma pelota, acomodou-a na funda e retesou o arco. O tiro saiu perfeito e certeiro, repetindo aqueles com que abatia marrequinhas nas lagoas ribeirinhas. A mula de fora recebeu o impacto na orelha, zurrou e disparou, levando junto a companheira de trela. Dentro da pipa explodiu um grito, mais que isso, um urro de dor e terror. Da boca da caixa o barro foi saindo, misturado, escurecido pelo sangue.
O rapaz escondeu arma e munição no mesmo local, sabendo que nunca seriam encontrados, e foi voltando para casa. Sentiu um prazer nunca sentido, remorso nenhum. Mas havia ainda uma grande dor encravada no peito, coisa que só o tempo, muito tempo, seria capaz de apagar. Era uma saudade doída da irmã.
Chegou a casa, empurrou a porta e acendeu o fogo, ajeitando os tições que restaram no borralho. Encheu a chaleira, preparou o coador para passar o café e só depois foi ter à mãe, que ainda dormia. Seria ela a substituta da irmã na banca da olaria de onde tiravam o sustento. Chamou-a, mesmo sabendo que naquela manhã não haveria trabalho por falta de amassador de barro. Saiu no terreiro, quintal da sua infância, foi ao poço, puxou um balde de água e o despejou no barril, depósito que mantinha sempre cheio num canto da cozinha.
Pegou uma caneca e pensou em alimentar a rosa. Quando entrou no quarto, a flor estava espalhada sobre o tampo da cômoda, despetalada. Só então percebeu que estava perdendo o resto da vida que a irmã deixara naquela casa, vazia e triste. A rosa caída arrancou-lhe lágrimas quentes que desceram macias pelo rosto, pranto de saudade que foi aumentando até libertar soluços que não conseguiu estancar. Sentiu as mãos da mãe em seus ombros, afago inútil. No jardinzinho bem cuidado jamais outra rosa solitária voltaria a florir no inverno. Jamais.
Plínio Vicente publica semanalmente suas crônicas no Jornal de Roraima.
Plinio Vicente
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