Não é muita gente no Brasil que sabe, mas Pete Seeger é uma das figuras mais fundamentais da música popular americana, e portanto do mundo. Sua estatura, importância e influência só podem ser comparadas às de monstros como Louis Armstrong no jazz, George e Ira Gershwin na grande canção, Elvis Presley no rock ou Bob Dylan no conjunto de quase todos os gêneros da música feita nos Estados Unidos.
Pete Seeger foi cantor, compositor, instrumentista, autor de manuais de música para iniciantes, escritor, desenhista; com uma carreira de mais de seis décadas, quase cem discos originais e mais de 50 coletâneas, escreveu um punhado de clássicos gravados e regravados até hoje por artistas importantes de diversos países; foi o principal responsável pelo folk revival dos anos 50 e 60, o fenômeno que trouxe à cena Joan Baez, Bob Dylan, Paul Simon, Peter, Paul and Mary, Joni Mitchell, Judy Collins, Eric Andersen, Phil Ochs e Tom Rush, entre tantos outros, e continua influenciando novas gerações de cantores e compositores, como Suzanne Vega, Tori Amos, Dar Williams. Recebeu quase todas as honrarias imagináveis – em 2007, milhares de pessoas assinaram uma petição para que ele conquistasse mais uma, o Nobel da Paz.
Porque ele foi também, além de grande músico, uma das pessoas mais extraordinárias, imensas, colossais que viveram no século 20. Quando Brecht escreveu aqueles versos definitivos (“Há homens que lutam um dia e são bons…. Há homens que lutam a vida inteira. Estes são os imprescindíveis”), estava se referindo às poucas pessoas como Pete Seeger. Ele passou os longos anos que lhe deram para viver lutando por uma sociedade mais justa, pelos direitos civis, pela preservação do meio ambiente, contra os preconceitos e contra as guerras.
Nascido um ano depois do fim da Primeira Guerra Mundial, “a guerra para acabar com todas as guerras”, viu seu país guerrear na Segunda Mundial, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão, no Iraque de novo, sem falar nos quase incontáveis episódios de guerras ou golpes locais em que de uma maneira ou outra os americanos se meteram – na República Dominicana, no Chile, em El Salvador, na Nicarágua, em Angola, …
Com exceção da guerra contra o nazismo, Pete Seeger esteve na linha de frente na luta contra todas. E não porque fosse um pacifista, como explicou, didaticamente, na canção “Bring ‘em Home”, de 1966, auge da guerra do Vietnã: “Não sou na verdade um pacifista. Se um exército invadisse esta minha terra, eu estaria na linha de fogo – mesmo que eles trouxessem seus aviões para bombardear, helicópteros e napalm”.
Acreditava que as guerras eram basicamente erradas, conforme explica na mesma canção, emblemática do pensamento humanista que perpassa toda a sua vastíssima obra: “Eles (os soldados) não trazem o armamento certo; o inimigo é a fome e a ignorância; o mundo precisa de professores, livros e escolas, e de aprender algumas poucas regras universais”.
Algumas poucas regras universais, segundo ele: guerra é insanidade; a existência ao mesmo tempo de milionários e miseráveis é abominável; qualquer opressão do Estado sobre o cidadão, mesmo que pequena, é absurda; todo racismo é crime; pena de morte é assassinato a sangue frio premeditado e com motivo torpe; pratique solidariedade, e não competição.
Seu país e o mundo não aprenderam essas poucas regras tão básicas, tão óbvias, como comprova o noticiário de hoje, ontem, anteontem. Mas Pete Seeger nunca desistiu de dar o seu recado, de clamar contra a maré crescente do conformismo, como se dizia nos anos 60. Em 2007, com uma rouquidão que demonstrava seus 88 anos de idade, sua bela voz (que ele mesmo definiu como a de um “tenor partido”, entre o contralto e o tenor) pôde ser ouvida na internet convidando os compatriotas a escreverem para seus congressistas pedindo o impeachment de George W. Bush e Dick Chenney por diversos crimes, como espionar civis ilegalmente, produzir relatórios mentirosos, prender pessoas sem acusação formal ou acesso a advogado, torturar e matar prisioneiros e fazer uma guerra ilegal, lançada com base em mentiras, e usando armas ilegais contra civis, jornalistas e hospitais.
Em janeiro de 2009, participou da grande festa pela posse de Barack Obama nas escadarias do Lincoln Memorial, em Washington, cantando ao lado de Bruce Springsteen. Em 2011, usando uma bengala em cada mão, marchou pelas ruas de Nova York no meio da multidão em apoio ao movimento Occupy Wall Street.
Sindicatos, trabalhadores
Em 1940, um ano antes do nascimento de Joan Baez e de Bob Dylan – com quem vinte e poucos anos mais tarde faria duetos –, Pete Seeger criou um conjunto chamado Almanac Singers. Seus companheiros no grupo eram Woody Guthrie e Lee Hays, entre outros. Guthrie, um gigante, uma lenda, compositor prolífico como poucos, viria a ser o grande ídolo de Dylan, que, no seu primeiro disco, em 1962, gravou quase só canções folclóricas, tradicionais, as folk songs; uma das duas únicas composições próprias chamava-se “Song to Woody”.
Lee Hays assinaria com Pete Seeger, muitos anos mais tarde, uma das músicas mais conhecidas do compositor, “If I Had a Hammer”, que teve dezenas e dezenas de gravações, da italiana Rita Pavone em sua fase juvenil ao grande chileno Victor Jara, passando por Trini Lopez e Peter, Paul and Mary – com estes últimos, a música chegou às paradas de sucesso americanas, uma praia que não é exatamente a de Pete Seeger.
(Se o eventual leitor conhece “If I Had a Hammer” e acha uma chatice, tudo bem. É seguramente uma canção menor dentro da obra do artista. Mas caiu no gosto da maioria, e isso não o desmerece.)
Os Almanac Singers eram um grupo tão musical quanto político; andavam pelo país cantando para trabalhadores, incentivando a organização de sindicatos. No violão de Guthrie havia a inscrição: “Esta máquina mata fascistas”. O repertório era basicamente as canções folclóricas, de domínio público, muitas delas vindas da Inglaterra e da Irlanda com os primeiros colonizadores, e que iam sendo adaptadas, mexidas, ganhando novas letras – e mais as canções compostas pela imaginação fertilíssima de Woody Guthrie, muitas delas em cima de temas musicais folclóricos ou criadas por outros artistas. As letras falavam de sindicato, trabalho; contavam histórias de gente do povo, de greves, de perseguições da polícia, de massacres. Por falar de coisas do momento, de assuntos específicos, tópicas, eram chamadas de “topical songs”; nos anos 60 seria usado o rótulo “canções de protesto” – nome que todos os seus autores e cantores detestavam.
Já nessa época dos Almanac Singers, o jovem Pete Seeger tinha acumulado um bom conhecimento de canções folclóricas e tradicionais. Ele nasceu – no Estado de Nova York, em 3 de maio de 1919 – em uma família ligada à música; o pai, Charles Seeger, era musicologista, estudioso de músicas de países orientais e pesquisador de canções folclóricas; a mãe, Constance, era violinista; a madrasta, Ruth Crawford Seeger, era compositora. Em 1938, depois de cursar dois anos de sociologia em Harvard, ele abandonou a universidade e arranjou um emprego no Arquivo de Música Folclórica Americana na Biblioteca do Congresso, onde trabalhou com Alan Lomax, um respeitado estudioso e pesquisador. Juntos, Lomax e Seeger percorreram o interior de vários estados sulistas, garimpando e gravando canções folclóricas, canções de trabalho, canções para crianças, blues.
Ao conhecer Woody Guthrie e formar os Almanac Singers, Seeger juntou o conhecimento teórico à prática. O grupo existiu durante apenas um ano e meio, até 1941 – o suficiente, porém, para deixar uma marca profunda na história da canção folk. E seus membros voltariam a fazer turnês e trabalhar juntos, em diversas formações, nos anos seguintes. Recrutado pelo Exército em 1942, Seeger foi incumbido de cantar e tocar para as tropas que lutavam contra os japoneses no Pacífico. Continuou se apresentando em público após o final da guerra, e, em 1949 – um ano depois de lançar o livro Como Tocar o Banjo de Cinco Cordas, que se tornaria um clássico -, formou, com o colega Lee Hays e mais Fred Hellerman e Ronnie Gilbert, o grupo Weavers.
“Quando eu ouço a América cantando, os Weavers estão lá”, resumiria o respeitadíssimo poeta Carl Sandburg. O Rolling Stone Music Guide definiria que a onda de renascença do folk começou oficialmente com a formação do grupo. Os Weavers tiveram um sucesso estrondoso, várias formações diferentes ao longo dos anos e diversas cerimônias comemorativas de reuniões, marcadas por grandes concertos no Carnegie Hall e discos feitos ali ao vivo. A partir dele pipocaram diversos conjuntos vocais de música folk, como o Kingston Trio, nos anos 50, e Peter, Paul and Mary, nos anos 60.
Beijos suaves e subversivos
A fase de maior sucesso dos Weavers, no início dos anos 50, coincidiu exatamente com a paranóia americana na Guerra Fria, o medo da influência comunista nos meios de comunicação e a caça às bruxas promovida pelo senador Joseph McCarthy e pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas da Câmara dos Deputados (HUAC, na sigla em inglês). Enxergavam subversão comunista em canções como “Goodnight Irene” e “Kisses Sweeter Than Wine”.
Os artistas intimados a comparecer diante do Comitê podiam optar entre se declarar culpados e entregar colegas também suspeitos de atividades subversivas, ou então recusar-se a responder a algumas perguntas com base na Quinta Emenda à Constituição, que dá o direito de não se auto-incriminar. Pete Seeger, que tinha pertencido ao Partido Comunista até 1950, escolheu o caminho mais difícil, usado por poucas pessoas: usou a Primeira Emenda, que garante o direito de todo americano de se associar com quem bem entender. Em 1955, escreveu para o Comitê: “Não vou responder a nenhuma pergunta quanto às minhas associações, minhas crenças filosóficas ou religiosas ou políticas, ou em quem votei em qualquer eleição, ou qualquer desses assuntos privados. Creio que essas são perguntas impróprias de serem feitas a qualquer americano”.
Essa ousadia fez com que fosse indiciado dois anos mais tarde por desacato ao Congresso e, em 1961, condenado a um ano de prisão, da qual só escapou em um tribunal de apelações. Mas não escapou de entrar na lista negra, e passou 17 anos, de 1950 a 1967, sem poder aparecer em qualquer programa das redes nacionais de TV.
O público perdeu mais do que o artista com esse banimento. Foi uma época extremamente rica na trajetória de Seeger. Separado dos Weavers para dedicar-se à carreira solo em 1958, fez turnês por todo o país; gravou, para o selo Folkways, dezenas e dezenas de baladas tradicionais e folk songs; nos anos 60, fez vários discos para a Columbia (hoje Sony), com composições suas, tradicionais e de outros grandes artistas. Engajou-se desde a primeira hora na luta pela igualdade racial e pelo respeito aos direitos humanos, e participou das principais manifestações lideradas pelo reverendo Martin Luther King. Ajudou a dar a forma final ao spiritual “We Shall Overcome”, transformado em hino do movimento que acabou com o apartheid que até meados dos anos 60 prevalecia nos Estados do Sul. Ajudou a fundar as revistas Broadside e Sing Out!, que espalharam por todo o país as partituras e letras de canções folk e dos novos compositores que usavam a tradição folk para criar novas músicas. Foi uma das principais figuras dos festivais de Newport, onde apresentou ao público e apoiou os recém-chegados Joan Baez e depois Bob Dylan, entre muitos outros. E esteve à frente da mobilização popular contra o envolvimento americano no Vietnã.
Foi ainda durante esse período em que não podia aparecer nas redes de TV que compôs algumas de suas principais e mais conhecidas obras – “Turn! Turn! Turn!” (que registrou para efeito de direitos autorais em 1954), “Where Have All The Flowers Gone” (1955), “If I Had a Hammer (1949) “Bring ‘em home” (1966) e “Waist Deep in the Big Muddy” (1967). Essas músicas, especialmente as três primeiras, foram e continuam sendo gravadas por artistas dos mais diferentes estilos, como Harry Belafonte, Joan Baez, Bobby Darin, Earth, Wind & Fire, Wes Montgomery, Dolly Parton, Johnny Rivers, Trini Lopez, Brothers Four, Marlene Dietrich.
(Aqui, “Turn! Turn! Turn! com os Byrds. E “Bring ‘em home” ao vivo com Pete Seeger.)
Marlene, uma das maiores estrelas da história do cinema, e que se dedicou à música depois de se cansar do trabalho diante das câmaras, era apaixonada por “Where Have all The Flowers Gone”. Tendo fugido da Alemanha nazista e servido ao Exército americano durante a Segunda Guerra, ganhando até a antipatia de boa parte de seus compatriotas, ela gravou a canção em alemão, inglês e francês, dando uma força brutal a cada palavra. A letra, redonda, que termina voltando ao começo do círculo viciado do apego das civilizações à guerra, é um daqueles exemplos acabados de como a aparente simplicidade, quase obviedade, pode ser de extraordinária beleza. A pergunta dolorosa – quando eles afinal vão aprender? – persiste a cada nova guerra. (Aqui, uma gravação ao vivo de Marlene, em 1963, com arranjo de Burt Bacharach.)
Pioneiro em muitas causas e muitos campos, Pete Seeger gravou canções folclóricas africanas já em 1955, décadas antes de a música do continente passar a fascinar músicos e críticos dos países desenvolvidos. Da mesma maneira, décadas antes que se cunhasse o termo world music, compôs, em 1960, uma ode à miscigenação e ao intercâmbio cultural “All Mixed Up” (aqui, a canção com Peter, Paul & Mary), e gravou músicas latino-americanas, do folclore judeu, da Espanha, da Itália, da Índia, do Caribe, da Noruega. Em 1967, compôs “My Rainbow Race”, um manifesto ecológico em escala planetária, muito antes que a defesa ambiental virasse moda (aqui, a canção com Pete Seeger). Tinha acabado de fundar, com um grupo de amigos, a Hudson River Sloop Clearwater, em defesa do Hudson, o rio junto do qual construiu ele mesmo a casa onde viveria décadas com a mulher, Toshi Aline Ohta. A partir do final dos anos 60, tornou-se um dos principais ativistas americanos pela preservação do ambiente.
Depois de Circles & Seasons, de 1979, um disco brilhante, com produção esmerada (a cargo do companheiro Fred Hellerman), ficaria afastado dos estúdios por 17 anos. Mas não parou de se apresentar ao vivo – em teatros, escolas, faculdades, ao ar livre – tanto em seu país quanto em turnês por diversas partes do mundo. Esteve no Brasil para uma seqüência curtíssima de shows em 1995, apresentando o neto Tao, músico que domina vários instrumentos. Gravou discos ao vivo na República Checa, em Portugal, na Argentina, este ao lado de León Gieco. Só em 1996 faria um novo disco de estúdio, Pete – que levou um Grammy.
Prêmios e mais prêmios
Entrar na lista negra do macartismo tinha sido apenas o primeiro de uma longa seqüência de honrarias que receberia. “Os anos 90 viram Seeger no palco recebendo prêmios tão freqüentemente quanto apresentando suas músicas”, resumiu Zac Johnson, no All Music Guide. Ele levou, entre muitos outros, a mais alta honraria artística dos Estados Unidos, dada pelo Kennedy Center pelo conjunto de sua obra, em 1994; entrou para o Hall da Fama do Rock and Roll (ele, que nunca fez rock na vida) em 1996; ganhou um Grammy por toda a obra em 1993; a Medalha de Artes da Universidade de Harvard (de onde saiu muito antes de receber o diploma) em 1996; e, em 1999, a Medalha Felix Varela, a mais alta honraria de Cuba, pelo “seu trabalho humanístico e artístico em defesa do ambiente e contra o racismo”.
Continuou se definindo como um comunista; no seu livro Where Have All The Flowers Gone – A Musical Biography, reeditado em 1997, escreveu, com humor e ironia: “No sentido mais profundo da palavra, acho que ainda sou um comunista. Gostaria de ver um mundo sem milionários. Volta e meia brinco que me tornei comunista aos sete anos de idade, quando li sobre os índios americanos. Nenhum rico, nenhum pobre”. Mesmo com atraso, renegou o ranço stalinista que muitos críticos apontavam em seu passado. Em 2007, escreveu uma carta para o historiador Ron Radosh pedindo desculpas por não ter enxergado e denunciado os crimes do regime comunista russo: “Acho que você está certo. Eu deveria ter pedido para ver os gulags quando estive na União Soviética”.
Depois de diversas honrarias oficiais e extra-oficiais, ele recebeu em 2006 uma que seguramente deve tê-lo emocionado mais que todas: o disco We Shall Overcome: The Seeger Sessions, de Bruce Springsteen. Endeusado pelas gerações mais novas, que o chamam de The Boss, o patrão, Bruce reuniu em sua fazenda 13 músicos – violão, guitarra, baixo, banjo, bateria, percussão, órgão, acordeão, violino, tuba, saxofone, trompete -, uma tralha imensa com o melhor do melhor das novas tecnologias de estúdio, e gravou, como se fosse ao vivo, com muita garra, 13 músicas do repertório do velho mestre. É um disco belíssimo, emocionante, de arrepiar. (Aqui, a íntegra do disco no YouTube.)
O coração de Pete Seeger deve ter batido muito forte – mas, corajoso, firme, poderoso, resistiu. Felizmente, alguns dos poucos homens indispensáveis são longevos.
Morreu no dia 27 de janeiro de 2014, em um hospital em Nova York. Tinha 94 anos.
Publicado em 28 de janeiro de 2014.
Sou um dos que não sabia. Ainda bem que o amigo Sérgio produz textos, não só compila. Sua autoria se comprova pelo uso dos superlativos.
Eu também não sabia. E você é um professor e tanto, Sérgio.
Beijo
Vivina
Artigo muitíssimo interessante. Confesso que também não sabia muito sobre a história de Pete Seeger, mas assim que tive a oportunidade de saber mais fiquei completamente fascinado. Parabéns!