É tudo a fingir

Blue Velvet -- Dennis Hopper  1986

Eu levava as coi­sas muito a peito. Fui pra­ti­ca­mente fili­ado no pol-potismo da crí­tica de cinema que os subs­ti­tu­tos de Truf­faut e Godard ins­ta­la­ram nos Cahi­ers du Cinèma quando lhe desa­ma­re­la­ram a capa. Até que, um dia, o actor Den­nis Hop­per cho­rou para mim. À minha frente, mas mesmo para mim.

A coisa passou-se há mais de 22 anos, entrevistava-o eu para este glo­ri­oso Expresso, a meias com o João Lopes, o que sig­ni­fica que Hop­per cho­rou metade para o João, a outra metade para mim.

Hop­per era con­vi­dado do Fes­ti­val de Tróia, e apareceu-nos fresco, enchar­cado em Eter­nity, os mais lin­dos olhos azuis que a face da Terra já viu plan­ta­dos na cara de um homem. Tra­zia os olhos res­plan­de­cen­tes e, azul sobre azul, fazia-os acom­pa­nhar pelo azul, tão tur­quesa como os olhos dele, de um dis­pli­cente fato de seda. Digo seda e tal­vez fosse linho.

zzzzzhopper2“Oh, oh, oh, I feel so bad”

Come­çá­mos a falar-lhe das ter­rí­veis per­so­na­gens, gajos de maus fíga­dos, que repre­sen­tara no Blue Vel­vet e no Paris Trout e ele esmagava-nos com ama­bi­li­dade. A meio do blá-blá-blá, e dos bad guys para a frente, actor do Método para trás, qui­se­mos saber se era fisi­ca­mente devas­ta­dor ter de ir às suas expe­ri­ên­cias ínti­mas, às suas tri­pas, pro­cu­rar o mal, esse lado bad, dos bad guys que repre­sen­tava. Hop­per olhou-nos, incré­dulo, e desa­tou no mais cla­mo­roso pranto que pode­ría­mos espe­rar: “Oh, oh, oh, I feel so bad”, e cho­rava baba e ranho. Segun­dos ner­vo­sos de espera, e os olhos azul-turquesa de Hop­per, bri­lhando mais do que o sol de Tróia, vol­ta­ram a rir-se: “C’mon, not that bad. It’s all right!

It’s all right” foi um calo­roso raio de luz vindo dos olhos de Hop­per. Na altura, andava eu a tro­car de cavalo para burro, deslambuzando-me de Barthes para apren­der o pés­simo e pes­por­rente inglês das crí­ti­cas de cinema do Vil­lage Voice e da Film Com­ment. E ali, em Tróia, chegava-me este Aqui­les de fato azul-turquesa: com três lágri­mas de paco­ti­lha e um intrans­cen­dente all right, ok resu­mia tudo, sim­pli­fi­cando as mais con­vul­sas filo­so­fias da repre­sen­ta­ção. É sem­pre mais sim­ples do que parece. E se não é, é por­que não é grande coisa.

Depois, fez dos entre­vis­ta­do­res gato-sapato. Pode­ria, disse, ter escrito um livro sobre a via­gem ao fim da noite que fora a sua expe­ri­ên­cia de jun­kie, e chamar-lhe Seis Dro­gas e como as Usar para Repre­sen­tar”. Gan­zava em cima das suas telas de Andy Warhol e outras pre­ci­o­si­da­des da arte pop espa­lha­das pelo chão, arrui­nando obras-primas. As que não arrui­nou, roubaram-lhas.

Con­tou outra experiência-limite. No cam­pus de uma uni­ver­si­dade, fez um cír­culo com car­gas de dina­mite. De pé, no meio do cír­culo, fez explo­dir as car­gas, sem mexer sequer os olhos azul-turquesa, saindo incó­lume. Res­piro fundo: o psi­co­pata de Blue Vel­vet é um menino de coro ao lado de Den­nis Hopper.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

7 Comentários para “É tudo a fingir”

  1. O que lhe digo, caro José Luis, meu contestatário fiel, é que lhe desejo Festas Felizes e muito boas leituras em 2014. Com estima.

  2. Caro Manuel agradeço muito os seus votos que retribuo; a propósito de boas leituras lembrei-me que li algumas crónicas belíssimas do João Bénard da Costa que encontrei pela internet. Li-as na altura no jornal “Independente” e gostava muito. Gostava porque percebia é claro.

  3. Ai, ai… E quem sou eu, pobre administrador deste site, para interferir na discussão entre esses dois conterrâneos que aqui de longe admiro?
    Desejo aos dois um excelente 2014! Se possível, excelente e menos áspero!
    Um abraço.

  4. Obrigado pelos seus votos caro Sérgio. Isto tem pouca aspereza só um niquinho.

  5. Caro José Luis,
    Faz muito bem em gostar das crónicas do João, com quem trabalhei muitos anos e com quem fiz, a meias, o Catálogo do Cinema Musical, entre outras coisas.
    Quanto ao que eu escrevo, está no seu pleno direito de não gostar e de sustentar que não compreende. Creia que nada farei para contrariar ou alterar esse seu ponto de vista.

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