Eu levava as coisas muito a peito. Fui praticamente filiado no pol-potismo da crítica de cinema que os substitutos de Truffaut e Godard instalaram nos Cahiers du Cinèma quando lhe desamarelaram a capa. Até que, um dia, o actor Dennis Hopper chorou para mim. À minha frente, mas mesmo para mim.
A coisa passou-se há mais de 22 anos, entrevistava-o eu para este glorioso Expresso, a meias com o João Lopes, o que significa que Hopper chorou metade para o João, a outra metade para mim.
Hopper era convidado do Festival de Tróia, e apareceu-nos fresco, encharcado em Eternity, os mais lindos olhos azuis que a face da Terra já viu plantados na cara de um homem. Trazia os olhos resplandecentes e, azul sobre azul, fazia-os acompanhar pelo azul, tão turquesa como os olhos dele, de um displicente fato de seda. Digo seda e talvez fosse linho.
Começámos a falar-lhe das terríveis personagens, gajos de maus fígados, que representara no Blue Velvet e no Paris Trout e ele esmagava-nos com amabilidade. A meio do blá-blá-blá, e dos bad guys para a frente, actor do Método para trás, quisemos saber se era fisicamente devastador ter de ir às suas experiências íntimas, às suas tripas, procurar o mal, esse lado bad, dos bad guys que representava. Hopper olhou-nos, incrédulo, e desatou no mais clamoroso pranto que poderíamos esperar: “Oh, oh, oh, I feel so bad”, e chorava baba e ranho. Segundos nervosos de espera, e os olhos azul-turquesa de Hopper, brilhando mais do que o sol de Tróia, voltaram a rir-se: “C’mon, not that bad. It’s all right!”
“It’s all right” foi um caloroso raio de luz vindo dos olhos de Hopper. Na altura, andava eu a trocar de cavalo para burro, deslambuzando-me de Barthes para aprender o péssimo e pesporrente inglês das críticas de cinema do Village Voice e da Film Comment. E ali, em Tróia, chegava-me este Aquiles de fato azul-turquesa: com três lágrimas de pacotilha e um intranscendente “all right, ok” resumia tudo, simplificando as mais convulsas filosofias da representação. É sempre mais simples do que parece. E se não é, é porque não é grande coisa.
Depois, fez dos entrevistadores gato-sapato. Poderia, disse, ter escrito um livro sobre a viagem ao fim da noite que fora a sua experiência de junkie, e chamar-lhe “Seis Drogas e como as Usar para Representar”. Ganzava em cima das suas telas de Andy Warhol e outras preciosidades da arte pop espalhadas pelo chão, arruinando obras-primas. As que não arruinou, roubaram-lhas.
Contou outra experiência-limite. No campus de uma universidade, fez um círculo com cargas de dinamite. De pé, no meio do círculo, fez explodir as cargas, sem mexer sequer os olhos azul-turquesa, saindo incólume. Respiro fundo: o psicopata de Blue Velvet é um menino de coro ao lado de Dennis Hopper.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Não me diga…
O que lhe digo, caro José Luis, meu contestatário fiel, é que lhe desejo Festas Felizes e muito boas leituras em 2014. Com estima.
Caro Manuel agradeço muito os seus votos que retribuo; a propósito de boas leituras lembrei-me que li algumas crónicas belíssimas do João Bénard da Costa que encontrei pela internet. Li-as na altura no jornal “Independente” e gostava muito. Gostava porque percebia é claro.
Ai, ai… E quem sou eu, pobre administrador deste site, para interferir na discussão entre esses dois conterrâneos que aqui de longe admiro?
Desejo aos dois um excelente 2014! Se possível, excelente e menos áspero!
Um abraço.
Admiráveis as discussões ásperas ou lisas. Que continuem em 2014.
Obrigado pelos seus votos caro Sérgio. Isto tem pouca aspereza só um niquinho.
Caro José Luis,
Faz muito bem em gostar das crónicas do João, com quem trabalhei muitos anos e com quem fiz, a meias, o Catálogo do Cinema Musical, entre outras coisas.
Quanto ao que eu escrevo, está no seu pleno direito de não gostar e de sustentar que não compreende. Creia que nada farei para contrariar ou alterar esse seu ponto de vista.