A lembrança da infância me visita e numa das imagens rememoradas me vejo olhando, da janela da cozinha, para o quintal enorme da casa em que morávamos em Diamantina. Era uma casa que tinha sido, provisoriamente, escola. Tanto que ainda restavam, em cada quarto dela, a inscrição sala 1, 2, ou 3. E os banheiros eram uma dúzia, a maioria trancados por minha mãe. Se os deixasse todos abertos, cada um dos filhos tomaria posse de um e seria impossível mantê-los limpos.
Mas a fotografia do menino de nove anos olhando pela janela, provavelmente chovia lá fora, é acompanhada do cheiro da comida que se preparava e, principalmente, de uma canção que ele ouvia e que volta sempre à sua memória. O rádio estava certamente sintonizado na Rádio Nacional, que influenciava o Brasil dos anos cinquenta com canções, rogramas de auditório, novelas para adultos e para crianças.
Guardo com carinho a trilha sonora original de “ Jerônimo, o herói do sertão”, que Getúlio Macedo, autor em parceria com Lourival Faissal, me presenteou em uma festa de natal de compositores. Bangue-bangue brasileiro pelo rádio, atiçando a imaginação, que maravilha que era.
Eu continuo desviando o caminho da lembrança. Não falei que a canção que sempre me vem à mente, em momentos os mais inesperados, é a marchinha “ Era de Madrugada”. Nos tempos anteriores à internet, procurei localizar o nome do autor e a versão completa, pois só me recordava de um trecho:
“Era de madrugada, vinha raiando o dia, quando em minha porta bateu Maria;
se não me dissesse seu nome eu não sabia, não conheci Maria.”
Agora ficou fácil e posso ouvi-la em várias versões: acabei de escutar uma, de Maria Bethânia, em 1973. E pude saber que seu autor foi o Paquito que, com parceiros, criou sambas e músicas carnavalescas que fizeram sucesso na época e se tornaram clássicos de nosso cancioneiro: “O trem atrasou”, “Não me diga adeus”, “Jacarepaguá”, “Daqui não saio”, “Tomara que chova”, “Bigorrilho”.
As canções que ouvimos, durante toda a nossa vida, grudam em nós e algumas se incorporam e ficam à espreita para reaparecer a qualquer tempo. Todos nós temos a nossa trilha sonora de vida. E nem sempre são as melhores canções que amamos. Basta o fato de terem sido tocadas num momento especial de nossa existência. “ Call me”, por exemplo, me lembra o despertar do primeiro amor.
“Recuerdos de Ypacaray” fez parte de uma longa e decisiva viagem de ônibus que me conduziu de Diamantina para a minha nova cidade, Belo Horizonte. A melancolia de saber que estava perdendo uma convivência muito boa e me dirigindo a um rumo desconhecido casou muito bem com aquela triste melodia.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em novembro de 2013.
Cada texto de Brant me reproduz a vida. Sim temos uma trilha sonora na nossa vida. O rádio ajudou muito, a rádio Nacional tinha a influência de uma TV Globo. Brant me fez recordar o auditório da rádio Mayrink Veiga, no Rio, e o programa ´”Hoje é dia de Rock”. Pelo rádio ouvi, pela primeira vez, a voz do Milton e a eterna trilha, para mim, Travessia.
Pelo ar nos chegava a trilha sonora e musical do momento. Nossa vida tinha som. Que falta faz a invasão radiofônia.