O que é preciso para que uma rua se encha de gente? Francis Coppola, no Godfather, part I, enche uma rua de alegria e vizinhos quando Sonny, um dos filhos de Don Corleone, dá uma lição ao cunhado.
Sonny, que é o que é por ter o físico e a virilidade de James Caan, descobriu que a irmã grávida tem, e não devia ter, um olho negro. Ela bem lhe pede que não faça nada, mas Sonny tem ideias próprias sobre violência doméstica. O exemplo cívico ferve nele como bicho-carpinteiro e a vocação pedagógica obriga-o a agir. Carlo, o cunhado, está na rua, numa tarde de Verão que uma boca-de-incêndio rega generosamente. Miúdos enchem os passeios de preguiça e brincadeiras parvas. Sonny irrompe, salta do carro já com um bastão na mão. Carlo pode ser mau aluno, mas não é parvo, e desata a fugir.
Não foge dez metros. O magistral Sonny apanha-o e atira-o em peso contra uma parede, para cima de um caixote do lixo. Os miúdos correm para aquela aula com a sede de moscas por mel. Gritam e os vizinhos juntam-se. Há homens e mulheres que aparecem e estremecem, riem e comentam. Escutem a banda sonora: em fundo ouve-se o lindo rumor de um bairro, um sopro de identidade comunitária, bulício popular de que toda a classe média tem nostalgia. E o sentido de missão de Sonny aplica-se, sistemático, na educação do cunhado pusilânime. A punhos, a pontapés, com os dentes (chega a morder-lhe, sim), com a tampa do lixo, Sonny explica com pundonor que se ele volta a tocar na “minha irmã” o mata.
Esclareço que não é de Sonny que queria falar. O que me faz escrever é a multidão que se junta. Esse grito de “venham ver, venham ver” que vai de boca em ouvido, a mim chegou-me pelo intercomunicador. Eu teria 20 anos e morava num 5.º andar, no Lobito. Com uma vontade de Sonny, ardia por fazer a revolução. Dava aulas e ouvi as vozes dos alunos no intercomunicador: “Profe, venha ver, é a guerra.”
Os rapazes do MPLA, com dois adoráveis Suzukis amarelos, uns jipinhos de levar meninas à praia, cercaram a sede da UNITA, no Terreiro do Pó, ignorando o romântico “Chá para Dois” da esquina. O primeiro tiro abriu o concerto. A UNITA respondeu à rajada. Como os catraios de The Godfather, atirámo-nos para dentro do primeiro prédio com vista privilegiada. Até darmos conta que era o prédio de Savimbi quando vinha ao Lobito. Um alvo. “E se disparam para aqui?” Tentámos sair e foi quando rebentou a primeira granada. Duas tentativas mais e escondemo-nos numa entrada anódina, de vista mais apertada. Logo um tiro atinge, de raspão, a cabeça do chefe do “éme” e os jipinhos retiram, um homem em braços.
Sonny não imaginava que o olho negro da irmã era o pretexto para uma armadilha fatal. A mesma armadilha que, à porta de Savimbi, ia pôr, inanimada, uma nação em braços.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sonny era espalhafatoso, ao contrário de Vito Corleone que sempre se valeu da discreção e do silêncio.
A multidão assistia ao espalhafato de MPLA e UNITA com a vista apertada.
Em 4 de fevereiro teria a UPA originado silenciosa o ardor revolucionário nos jovens?
Qual o origem do olho negro que levou uma nação em braços?
Francis Ford Copolla deveria levar as telas de cinema a história dos angolanos, sem envolvimentos com a “omerta”.
Gosto muito de O Padrinho I e lembro-me bem desta cena em que o Sonny dá porrada no Carlo.
Ao terceiro ou quarto soco o Sonny aplica-lhe um que passa aí a uns 30/40 cms do Carlo. Os dois actores lá fizeram a fita mas esse murro falhou completamente e devia ter sido cortado na montagem.
Sobre o resto do devaneio não tenha nada a dizer.
Uma parte das culpas da homérica luta pela qual Angola passou, resulta da famosa geo-estratégia, meu caro Miltinho.
Grato, José Luis, pelo comentário.