Nunca fui a Altamira ou às grutas de Chauvet. Talvez Hitchcock tenha visitado esses museus rupestres de touros e felinos. Talvez a cruel inocência dos seus olhos de filho de merceeiro inglês se tenha espantado com as pinturas de leões e bisontes.
Comparemos as antiquíssimas gravuras com o filme de aves em fúria que é The Birds. A quantidade conta: correm manadas nas paredes obscuras das grutas pré-históricas; milhares de pássaros criam o fim do mundo no filme de Hitchcock. Um guionista ainda lhe sugeriu que nunca se vissem pássaros. Despediu-o num segundo.
E o mistério conta tanto como a quantidade: nunca saberemos por que razão os nossos arquiavôs pintaram frisos de cervos em cavernas; ninguém descobrirá por que é que, em The Birds, as aves atacam a elegantíssima loura que é Tippi Hedren.
Antes dos pássaros, atacou-a o rotundo Hitchcock. À frente de Alma, sua mulher, Hitch ofereceu-lhe um broche com duas aves em voo, dizendo: “O papel é seu!” A seguir, fez mil manobras para obter os favores da actriz. Hitch teve insónias. Truffaut ouviu da sua boca o lamento de ter vivido um “sequestro emocional”. Tippi Hedren resistiu a tudo, ao poder, chantagem e até ao humor inglês desse génio que para ela era um pote de toucinho.
Está em The Birds o momento em que ela cede. Hitch meteu-a uma semana a filmar num quarto cheio de pássaros. Prometera-lhe que filmaria com modelos de plástico ou gesso, nunca aves autênticas. Mentiu-lhe. Atou-lhe aves vivas à roupa. Torturou-a.
Está no filme. Hedren escuta um barulho. Sobe as escadas, abre a porta. Cai-lhe em cima uma alucinada massa de pássaros assassinos – diz-se que os enlouqueceram a trigo e whisky! Para salvar Mitch, o seu amor, e a família dele, solta um “I love you, Mitch” e fecha-se com as aves, sacrificando-se à orgia de bicos, patas e asas. Não sei se algum dia vimos, assim, uma mulher render-se ao seu predador, se vimos um tão consentido e voluptuoso abandono.
Pode bem ser a minha detestável cabeça: a idade emprestou-me aos olhos alguma degenerescência retiniana e leituras juvenis de Sade deixam um rapaz entre vício e virtude, aos saltos de Justine para Juliette, de Juliette para Justine. Mas juraria que, nessa cena, Tippi Hedren quer dar aos pássaros o que, obstinada, recusou a Hitchcock. Talvez me engane menos do que parece. Na montagem, Hitch apagou, até ser imperceptível, o rendido “I love you, Mitch”, para que, ao espectador sem cadastro sadiano, pareça que Hedren escorregou, expondo-se por acidente a um ataque em que até os olhinhos lhe vão comer.
Tippi Hedren deu aos pássaros o que não deu a Hitchcock e ele não perdoou ver sair-lhe da boca o pão que tantos bicos, compridos e curtos, cónicos e curvos, debicam agora, sem perder uma migalha.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.