Construíram a maior máquina de sonhos que a humanidade conheceu. Tecida a luz e sombras, cerzida a estrelas. Tudo projectado em milhões de gigantescos ecrãs que disseminaram uma diáfana ilusão sobre brancos e negros, indianos ou japoneses. Papuas, mesmo esquimós, terão tido a sua convulsão a chiaroscuro ou technicolor.
Já tinha havido sonhos. Homero e Shakespeare, Caravaggio e Miguel Ângelo, sonhos de papel, tela, mármore e vitrais. Já tinha havido sonhos e uma legião de Freuds para os interpretar. Mas nunca ninguém ganhara tanto dinheiro com os sonhos.
Louis B. Mayer, Selznick, os homens que financiaram e construíram a máquina de sonhos, sonhavam com o quê? Jack L. Warner, por exemplo. Era um dos irmãos Warner, os donos da Warner Bros. Nenhum dos estúdios de Hollywood se parece tanto com uma fábrica como os estúdios da WB. Para quem vá de Sunset, passa-se o Hollywood Bowl, segue-se pela Cahuenga Bld e no vale, em Burbank, estende-se o que, se fossem sobreiros, seria um belíssimo latifúndio. O latifúndio dos sonhos
Jack L. Warner era o dono dos sonhos que saíam dos 30 hercúleos plateaux onde tudo se pode filmar: uma cidade ou a selva, a vida da irmã Lúcia ou o caso BPN. Dono dos sonhos, dono de Bette Davis e Humphrey Bogart, dono do Jazz Singer, primeiro filme sonoro, dono de Busby Berkeley, Michael Curtiz ou Howard Hawks. Dono do dinheiro.
Teria Jack, em 1958, sonhado a sua própria morte se não fosse o dono do dinheiro? Viera a Cannes, ao festival. Foi fazer o que o divertia, jogar no casino. Em seis horas, a uma mesa de baccarat, ganhou dois milhões de francos franceses – vivam-se tempos pré-Gaspar! Meteu-se num Alfa Romeo para voltar a casa. Eram duas da manhã, a estrada uma fitinha aos esses e Jack, a ultrapassar um camião, espetou-se. Anunciaram-no morto, primeiro; à beira da morte, depois. Sonhou a sua própria morte durante um ano, até voltar à vida. Voltou também ao casino, os dois milhões a dançarem-lhe na cabeça, e falou com o croupier. “Mr. Warner, está enganado, não ganhou milhões nenhuns. Ficámos quites, nessa noite.”
O sonho, o dinheiro e a morte. Warner lembrou-se então de, anos antes, ter estado ali a jogar chemin de fer com o Rei Farouk do Egipto. Chegou um industrial inglês que pôs na mesa 200 mil francos em fichas. O rei cobriu a aposta e o inglês ganhou. Olhou para a montanha de fichas, começou a tremer e caiu para o lado. Os empregados levaram-no para o terraço. Meia hora depois, ainda à mesa, Farouk disse a Warner: “Que falta de fair play, ganhar e ir-se embora sem dar a desforra.” Nessa altura, o director do casino vem à mesa dizer-lhes: “Majestade, o cavalheiro inglês já não volta. Está morto.”
Donos dos sonhos, donos do dinheiro, donos da morte.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Não seria necessário, mas lá vai: na foto, Jack L. Warner está entre Bette Davis e Joan Crawford. O Manuel que me perdoe, mas vou dizer: só mesmo Jack L. Warner para ficar entre essas duas e não morrer no meio de tanta transmissão de veneno de uma para outra.