Em 6 de agosto de 1983, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, fez um pronunciamento radiofônico à nação sobre comércio internacional que permanece atual e revelador. Suas palavras servem como um alerta sobre os riscos do protecionismo comercial que voltou à cena com força sob a liderança de Donald Trump, cuja agenda tarifária ameaça desestabilizar a economia global e corroer a hegemonia americana.
O discurso foi transmitido de Camp David, Maryland, e está disponível no site oficial da Biblioteca Presidencial Ronald Reagan.
Em 1987, Reagan voltou à carga e, num vídeo resgatado recentemente nas redes sociais chinesas, declara em alto e bom som: “Tarifas altas inevitavelmente levam à retaliação de outros países e ao desencadeamento de guerras comerciais. O resultado são tarifas cada vez mais altas e menos concorrência. Assim, em pouco tempo, devido aos preços artificialmente elevados por tarifas que subsidiam a ineficiência e a má gestão, as pessoas param de comprar. No longo prazo, tarifas contra importados resultam em colapso de mercados, falências de empresa e milhões de empregos perdidos.”
A advertência do presidente americano não foi proferida por acaso. Naquele momento havia uma pressão bipartidária para a adoção de tarifas contra o Japão e a Coreia do Sul, sob pretexto de proteger a indústria americana, que não conseguia concorrer com os produtos dos dois países asiáticos.
Em vez de ceder, Reagan advertiu os Estados Unidos para não repetir erros do passado, citando as consequências negativas da lei Smoot-Hawley, adotada em meio à depressão dos anos 30. Por meio dessa lei, foram estabelecidas tarifas para a importação de mais de 20 mil produtos, provocando uma retração de 60% no comércio mundial. Em vez de contribuir para a recuperação da economia do país, agravou a depressão econômica e suas mazelas sociais.
Revisitar a doutrina Reagan é fundamental para entender o quanto o caminho trilhado por Donald Trump é a negação do “reaganismo” e do seu legado. Essa doutrina esteve em sintonia com o espírito da Cúpula de Williamsburg, Virginia, realizada em maio de 1983 em uma conjuntura de recessão global, alta inflação e tensão comercial entre os países desenvolvidos. Apesar das divergências sobre políticas econômicas, os países do G7 acordaram apoiar o livre comércio e se opor ao protecionismo, além de se comprometer com o combate à inflação, o crescimento sustentado e o fortalecimento dos mecanismos multilaterais. Não só econômicos, como o GATT, mas também geopolíticos, como a OTAN.
O reaganismo foi uma doutrina com uma visão liberal da economia, pautada na diminuição do papel do Estado, no desenvolvimento tecnológico e na integração dos Estados Unidos com a economia mundial, que anos depois levariam à formação das cadeias produtivas globais. Tinha uma mensagem de economia de mercado, com forte apelo individual e à identidade nacional americana. Apostava, sobretudo, no “American Dream” de que as pessoas poderiam prosperar por meio do seu esforço pessoal.
Reagan acreditava que o sucesso vinha da iniciativa pessoal, e não da dependência do Estado. Defendia menos intervenção do governo na economia, redução de impostos e livre mercado como caminhos para alcançar o sonho americano.
Inegavelmente, sua era foi de prosperidade econômica nos Estados Unidos, que saiu da recessão do final dos anos 70 e gerou novos empregos. A globalização, da qual foi um dos grandes artífices, propiciou a emergência de uma nova potência, a China, a diminuição da pobreza extrema, o acesso a bens de consumo para centenas de milhões de pessoas, embora tenha ampliado a desigualdade de renda e gerado um exército de perdedores. No balanço final, a globalização gerou mais benefícios do que que danos. Tanto para a economia mundial como para a população.
A doutrina Reagan influenciou a política americana por quatro décadas e reconfigurou o mundo. A maioria dos presidentes americanos que o sucederam mantiveram os principais fundamentos da “reaganomics”. Até mesmo os democratas Clinton e Obama. Também houve continuidade de sua geopolítica, pautada na defesa do “mundo livre”, no multilateralismo e no fortalecimento e expansão da OTAN para países do Leste Europeu. Para Reagan, os imigrantes eram uma fonte de dinamismo econômico. Sua visão encontrava respaldo diante do papel dos imigrantes na história americana.
A exceção foi Donald Trump. Sua política, principalmente neste segundo mandato, não representa apenas uma ruptura do “reaganismo”. É a negação dos valores que permearam seu país e o mundo nos últimos 40 anos. Os Estados Unidos consolidaram-se como o líder de um mundo unipolar até a assunção da China como segunda grande potência econômica do mundo.
As diferenças entre o reaganismo e o trumpismo são oceânicas. Afinal, Reagan foi um árduo defensor do livre comércio e dos órgãos multilaterais. Trump é protecionista, impôs tarifas unilaterais e minou acordos comerciais multilaterais. Reagan assinou anistia para milhões de imigrantes irregulares em 1986. Trump adotou uma postura hostil à imigração, com deportações e construção de muro na fronteira. Reagan foi um internacionalista, acreditava no papel dos EUA como liderança global priorizando as relações com as democracias ocidentais, particularmente com a Europa. Trump é isolacionista, com forte viés intervencionista, cético com alianças tradicionais (como a OTAN) e elogios a autocratas como Putin. Donald Trump pensa no isolamento da Europa, numa espécie de ressureição do espírito de Yalta, com a divisão do mundo em áreas de influência entre os Estados Unidos, a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping.
A diferença entre os dois está também no estilo e na retórica política. Enquanto Ronald Reagan tinha uma mensagem de otimismo e fazia política de forma civilizada, até mesmo com adversários, a retórica de Donald Trump é agressiva, divisionista e personalista, frequentemente contra instituições, e até a membros do próprio partido. São diferenças da água para o vinho. Um foi, antes de tudo, um construtor de esperanças. O outro é um livre atirador inconsequente.
Cada um entra na História da maneira como constrói a estrada de sua vida política. A estatura de cada um depende do próprio feito. No acervo de Reagan está o papel que desempenhou para o desmanche do maior inimigos dos Estados Unidos, na sua época: a União Soviética. Já Trump pode ser lembrado pela história como o presidente que facilitou o caminho para a China se tornar na principal força econômica do mundo.
A mitomania de Trump está levando a isso. Aos Estados Unidos entrar em rota de colisão com o mundo inteiro, deixando de ser confiável para parceiros históricos que estiveram sempre ao seu lado. Seu “Dia da Libertação” representa o Armagedon da ordem nundial duramente construída após a Segunda Guerra Mundial. Vai entrar para a História como quem transformou o país símbolo do capitalismo em arauto do isolacionismo. E a China, país de uma ditadura do partido único como o guardião do multilateralismo e do livre comércio. A História tem suas ironias.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 16/4/2025.