Preconceitos que inundam a MPB

No canal Causos Musicais, no Youtube, procuramos identificar manifestações misóginas, racistas, homofóbicas e outras formas de discriminação que estão presentes no nosso cancioneiro popular. Afinal de contas, a música é uma forma de socialização, de se fazer a cabeça de jovens, assim como a família, a escola, a igreja.

Essa nossa iniciativa se insere num movimento revisionista mundial que quer combater preconceitos existentes em diversas áreas. Assim, os livros sobre o agente James Bond, do britânico Ian Fleming, são acusados de racismo, machismo e homofobia. Os do espírita Allan Kardec, de racismo (os de Monteiro Lobato também). O pintor Pablo Picasso é acusado de machismo tóxico. A autora J. K. Rowling, criadora de Harry Potter, é apontada como transfóbica…

Não se trata de fomentar cancelamentos ou censura (somos contra isso). Mas sim de apontar preconceitos que alimentam até hoje a violência contra mulheres, negros, gays etc, causando muitas mortes.

De início, pensávamos em fazer um só programa. Mas descobrimos tanta coisa, os internautas mandaram tantas sugestões, que o resultado foi uma série de quatro programas.

 Pobres mulheres

Vamos começar com o tratamento dado às mulheres, que é um campo fértil de pesquisa, misturando misoginia com violência e desrespeito sexual .

O grande Martinho da Vila tem uma música chamada “Você não Passa de uma Mulher” (o título já diz tudo). E em “Disritmia” ele fala “Vem logo, vem curar seu nego/que chegou de porre, lá da boemia”. Ou seja, ele larga a mulher em casa, cai na farra, volta bêbado, talvez a acorde e nem pede “por favor”, mas sim ordena “vem logo”.

Voltando ao passado, um dos pioneiros do samba  – Heitor dos Prazeres – dizia na música “Mulher de Malandro”: Mulher de malandro sabe ser/Carinhosa de Verdade/Ela vive com tanto prazer/Quanto mais apanha a ele tem amizade/ (Longe dele tem saudade).

O primeiro samba-enredo da Portela, chamado “Lá Vem Ela Chorando (Dinheiro Não Há)”, diz: Carinho eu tenho demais/ Pra vender e pra dar/ Pancada também não há de faltar/ Dinheiro, isso não, isso eu não dou a mulher/ Faço descer a terra, o céu e as estrelas/ Se ela quiser/ Mas dinheiro não há. Essa música de Ernani Alvarenga e Benedito Lacerda é de 1932 e foi gravada por Beth Carvalho em 1977. Se fosse hoje, talvez a Beth não gravasse…

O gênio do samba de breque, Moreira da Silva, dizia em “Na Subida do Morro”: Na subida do morro me contaram/ Que você bateu na minha nega/ Isso não é direito/ Bater numa mulher/ Que não é sua/ Deixou a nega quase nua/ No meio da rua…Ou seja, se a nega fosse dele, tava tudo certo…

Pra quem acha que essas coisas ficaram no passado, vamos ver um marco da Axé Music, “Fricote”, tremendo sucesso nacional em 1985. A letra diz: Nega do cabelo duro/ Que não gosta de pentear/ Quando passa na Baixa do Tubo/ O negão começa a gritar:/ Pega ela aí, pega ela aí/ Pra quê/ Pra passar batom/ Que cor? De violeta/ Na boca e na bochecha” (pra não citar explicitamente o órgão sexual feminino – mais pra frente é dito Que cor? De cor azul/ Na boca e na porta do céu…)

Essa música, de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, consegue reunir vários preconceitos; racismo (a expressão “cabelo duro” hoje é considerada depreciativa de uma característica dos negros, os cabelos crespos), violência (“pega ela aí”, contra a vontade dela) e um incentivo ao estupro (as sugestões sobre o que fazer com ela). Não à toa, Luiz Caldas – que é um excelente músico – hoje diz que não a canta mais.

Em “Faixa Amarela”, Zeca Pagodinho diz: Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas…Ele também afirma que retirou essa faixa de seus shows.

Os Beatles não escapam da onda revisionista. Em “Run for Your Life” (corra para salvar a sua vida), eles dizem: Bom, eu prefiro te ver morta, garotinha/ Do que te ver com outro homem / Melhor ficar esperta, garotinha/ Ou você não vai saber que estou aqui/ Melhor correr por sua vida, garotinha/ Se esconder, garotinha/ Se eu te pegar com outro homem/ É o seu fim, garotinha. Essa ameaça de assassinato é o mesmo tema de “Se te Agarro com Outro te Mato”, cantada por Sidney Magal.

A cor importa

Na seara do racismo, o exemplo clássico é “O Teu Cabelo Não Nega”, de Lamartine Babo, Raul Valença e João Valença: O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas como a cor não pega, mulata/ Mulata eu quero o teu amor. Já que não há o risco de ele ficar “mulato” ou “negro”, então ele quer o amor dela (e cada um de nós pode escolher se ele quer o amor romântico ou simplesmente sexual).

Já falamos sobre a expressão “cabelo duro”, que está presente também na música “Nega do Cabelo Duro”, de David Nasser e Rubens Soares: Nega do cabelo duro/ Qual é o pente que te penteia?/ Qual é o pente que te penteia?/ Qual é o pente que te penteia, ó nega?

Os sambistas paulistas Germano Mathias e Doca fizeram uma música inacreditável – “Minha Nega na Janela” – que mistura violência doméstica, sexismo, racismo e sadismo. A letra diz: Minha nega na janela/ Diz que está tirando linha/ Eta nega tu é feia/ Que parece macaquinha/ Olhei pra ela e disse/ Vá já pra cozinha/ Dei um murro nela/ E joguei ela dentro da pia/ Quem foi que disse/ Que essa nega não cabia?  O curioso é que Gilberto Gil gravou essa canção no LP Realce, de 1979. Possivelmente, hoje não gravaria mais.

Homofobia

Talvez a campeã de cancelamentos por blocos de carnaval seja a marcha “Cabeleira do Zezé” (1964), de João Roberto Kelly e Roberto Faissal: Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é? Será que ele é? (aqui o público no salão gritava “bicha”)/ Será que ele é bossa nova?/Será que ele é Maomé?/ Parece que é transviado/Mas isso eu não sei se ele é/Corta o cabelo dele…

   Até hoje João Roberto Kelly diz que não faz música para ofender ninguém, que essa marcha é uma crítica aos transviados (vadios) da época e que a palavra não quer dizer “viado”. Em 2023 ele lançou uma marchinha em homenagem à comunidade LGBTQIAPN+ dizendo: Eu sou gay/ O mundo é meu/ Você não é?/ Azar o seu. Sinceridade? Conversão? Oportunismo? Você decide…

Outra canção que critica o cabelo grande para os homens é o “Xote dos Cabeludos”, de Luiz Gonzaga e José Clementino. Teria sido uma resposta do Gonzagão à chegada de Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda, todos de cabelos longos. A letra é: Atenção senhores cabeludos/Aqui vai o desabafo de um quadradão/ Cabra do cabelo grande/ Cinturinha de pilão/ Calça justa bem cintada/ Costeleta bem fechada/ Salto alto, fivelão/ Cabra que usa pulseira/ No pescoço, medalhão/ Cabra com esse jeitinho No sertão de meu padrinho/ Cabra assim não tem vez não… A insinuação de homossexualidade – e a repulsa a ela – são evidentes.

Indígenas

Os povos originários também não escapam do preconceito na música.

Uma amiga de Belém me chamou a atenção para o fato de que o hino do Pará diz: Salve ó terra de rios gigantes/ d’Amazonia princesa louçã/ Tudo em ti são encantos gigantes/ Desde a indústria à rudeza pagã. A “rudeza pagã” são os indígenas (que cuidam da Amazônia bem melhor que a “delicadeza cristã”).

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Esses são apenas alguns exemplos da pesquisa que fizemos. Quem quiser mais, é só entrar no canal Causos Musicais, no Youtube, e buscar Canções Politicamente Incorretas.

Como dissemos no início, nosso objetivo não é censurar ou cancelar, mas sim chamar a atenção para preconceitos que são passados de geração em geração, ajudando a formar mentalidades distorcidas e gerando violência e mortes.

(*) Bernardo A. Carvalho é jornalista e professor universitário aposentado. Hoje se dedica a pesquisar a música popular do Brasil e de outros países.

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