Por que raios Lula insiste em bajular o ditador?

Por que raios será que Lula insiste em bajular o ditador sanguinário da Rússia – que além de tudo é tão de direita quanto Bolsonaro, um reacionário homofóbico, transfóbico, culturofóbico?

O que será que ele acha que ganha com isso, meu Deus do céu e também da Terra?

Escrevi esses dois parágrafos aí no Facebook, na noite de quarta-feira, 7 de maio, véspera do dia em que em que os países ocidentais comemoram os 80 anos da rendição final da Alemanha nazista.

No dia 8, o dia do aniversário do final na Segunda Guerra Mundial na Europa, um editorial e três artigos nos maiores jornais brasileiros mostraram que eu não estava sozinho em minha indignação.

O título do editorial de O Globo não poderia ser mais claro: “Lula trai memória da 2ª Guerra ao celebrar vitória com Putin”. O editorial lembra que “nenhum líder de democracia ocidental relevante aceitou dar apoio público ao responsável pela invasão da Ucrânia, maior agressão militar em solo europeu desde justamente o final da Segunda Guerra”.

Também no Globo, em artigo com o título claro, forte de “Lula em Moscou: o lado errado da História”, o empresário Ricardo Rangel escreveu que o presidente brasileiro “escolheu este momento simbólico, em que as democracias celebram a vitória contra as tiranias, para confraternizar com Putin, Xi Jinping, Maduro e mais dúzia e meia de liberticidas. Não é apenas ignorância histórica e estupidez política, é a mais grave agressão diplomática (depois de muitas) às democracias européias até agora. Ela terá consequências.”

A meia dúzia de liberticidas de que fala o articulista no Globo inclui os ditadores de Cuba, Venezuela, Bielo-Rússia, Azerbaijão, Burkina Fasso, Congo e Egito.

No Estado de S. Paulo, William Waack escreveu uma frase brilhante: “Nossos soldados lutaram e morreram pela democracia. Celebrar essa vitória ao lado de Putin é dar um tapa na cara deles.”

Na Folha de S. Paulo, Carlos Gustavo Poggio, doutor em relações internacionais, escreveu: “Na política internacional, os gestos falam tanto quanto os tratados. A presença do presidente Lula (PT) em Moscou, ao lado de Vladimir Putin, durante o Dia da Vitória, em meio ao boicote da maior parte das democracias liberais, é um desses gestos que moldam percepções e alteram expectativas. O Brasil afirma neutralidade no conflito entre Rússia e Ucrânia, mas os sinais que emite indicam outra coisa.”

Aqui vão as íntegras do editorial e dos três artigos. (Sérgio Vaz)

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Lula trai memória da 2ª Guerra ao celebrar vitória com Putin

Editorial, O Globo, 8/5/2025

É um erro a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de participar, ao lado do russo Vladimir Putin, das celebrações do Dia da Vitória, que marca o 80º ano do triunfo sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra. Além de Lula, assistirão ao desfile militar na Praça Vermelha o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, e o cubano, Miguel Díaz-Canel. Nenhum líder de democracia ocidental relevante aceitou dar apoio público ao responsável pela invasão da Ucrânia, maior agressão militar em solo europeu desde justamente o final da Segunda Guerra.

O contexto em que ocorre a celebração promovida por Putin está repleto de significados. A máquina de desinformação russa tem mantido atividade frenética nos últimos tempos ao espalhar mentiras sobre a Segunda Guerra. Um dos exemplos mais notórios ocorreu no ano passado, em entrevista ao propagandista americano do trumpismo Tucker Carlson. Naquela ocasião, Putin declarou que a Polônia “colaborou com Hitler”. Trata-se de uma distorção sem cabimento dos fatos históricos.

A guerra, como todos sabem, começou em 1º de setembro de 1939, com a invasão da Polônia por tropas nazistas. Putin acusa os poloneses de ter forçado a invasão ao se recusar a ceder à Alemanha o “corredor polonês”, saída polonesa para o Mar Báltico que separava o território alemão da região de Danzig (hoje, Gdansk na Polônia). Por essa interpretação, os poloneses levaram Hitler a iniciar a guerra — um absurdo. Por mais que o governo polonês, a exemplo da União Soviética sob Stálin, tivesse firmado um pacto de não agressão com a Alemanha, continuou durante a guerra a lutar contra os nazistas, tanto no exílio quanto por meio da resistência local.

A empulhação de Putin endossa a versão usada pelos nazistas para justificar sua agressão à Polônia. O interesse é evidente: traçar um paralelo com a invasão da Ucrânia, que Putin sempre justificou sob a alegação de que os ucranianos controlavam territórios reivindicados pela Rússia.

As mentiras de Putin são tão descaradas e ofensivas que um grupo reunindo mais de 200 dos maiores estudiosos da Segunda Guerra subscreveu um abaixo-assinado intitulado “Historiadores pela Ucrânia”. O texto qualifica a acusação contra os poloneses como “completamente falsa”. Lembra ainda que, sob Stálin, a União Soviética também ocupou partes da Polônia, atacou a Finlândia, invadiu Lituânia, Letônia e Estônia. “A razão pela qual esta luta sobre a nossa História é tão importante é que Putin usa a memória da Segunda Guerra como arma para justificar a invasão da Ucrânia de hoje — um país que ele falsamente afirma ser um ‘Estado fascista’ que precisa de ‘desnazificação’”, afirmam os historiadores.

Quando soube da visita de Lula, o governo ucraniano não escondeu o mal-estar. Como informou reportagem do Globo, o presidente Volodymyr Zelensky encara os acenos do Brasil a Putin como sinal de parcialidade. Zelensky tem razão. O fato de o Brasil importar da Rússia fertilizantes imprescindíveis para o agronegócio não justifica os agrados a Putin, muito menos a presença de Lula nas celebrações do Dia da Vitória. Ao fazer isso, ele não apenas endossa implicitamente a versão mentirosa da propaganda russa sobre a Segunda Guerra, mas a própria invasão da Ucrânia, exatamente como faz Donald Trump.

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Lula em Moscou: o lado errado da História

Por Ricardo Rangel, O Globo, 8/5/2025.

Não é novidade que a democracia liberal está ameaçada. Nunca, desde a derrota do nazifascismo em 1945, a extrema direita esteve tão forte, e ela está por toda parte: Trump, Le Pen, Orbán, Bolsonaro etc. Recentemente, o segundo lugar nas eleições alemãs ficou com a extremista Alternativa para a Alemanha (AfD), e o vencedor teve dificuldade para formar um governo (na última vez em que um cenário parecido ocorreu, em 1930, ele abriu caminho à ascensão de Hitler).

A situação internacional tampouco é fácil. Há a ameaça do imperialismo militar russo, os riscos da eventual hegemonia econômica da ditadura chinesa e o fogo amigo. Trump rasga a Constituição como quem troca de roupa, defende extremistas estrangeiros, desorganiza o comércio internacional.

A celebração do aniversário de 80 anos da vitória na Segunda Guerra Mundial, nesta semana, é simbólica: serve como alerta contra os riscos do extremismo e faz parte da luta da democracia pela sobrevivência. Lula poderia festejar em qualquer lugar — inclusive no Brasil, de onde se ausenta em demasia —, mas escolheu Moscou. Haverá quem diga que faz sentido, já que a antiga URSS era nossa aliada contra o nazismo. Mas o Brasil entrou na guerra por causa dos Estados Unidos e sempre combateu sob o comando de generais americanos. Nunca tivemos contato com os russos.

Além disso, a aliança era acidental e incômoda: Alemanha e URSS eram regimes totalitários similares, comandados por ditadores paranoicos e sanguinários. Antes de se unir à luta contra o nazifascismo, Stálin assinou um pacto de não agressão que permitiu a Hitler iniciar a guerra. A URSS ficou com Finlândia, Repúblicas Bálticas e metade da Polônia — e a ocupação soviética foi tão brutal quanto a alemã. (O governo da Polônia no exílio se aliou aos países ocidentais, não à URSS.)

De toda forma, se a justificativa para a presença de Lula na Rússia é a antiga aliança com a URSS, como fica a Ucrânia, também ex-república soviética? Qual a justificativa para prestigiar um antigo aliado e insultar o outro? Lula quis reduzir o papelão marcando, em cima da hora, uma visita a Volodymyr Zelensky — isso depois de esnobá-lo por quase dois anos. O presidente da Ucrânia mandou dizer que tem mais o que fazer, classificou a ida de Lula a Moscou como “ato hostil” e cogita reduzir o status diplomático na relação conosco.

A maior parte dos países europeus viveu anos sob ocupação e opressão nazistas, e metade se libertou de Hitler para cair sob a opressão soviética. Hitler e Stálin eram parecidos, e Putin se parece com os dois. Não apenas por ser um ditador totalitário que tem o hábito de assassinar adversários, mas também por questões geopolíticas.

Hitler anexou a Áustria, intimidou as potências ocidentais para lhe darem um pedaço da Tchecoslováquia (depois tomou o país inteiro), invadiu a Polônia e jogou o mundo numa guerra devastadora. Putin anexou a Crimeia e invadiu a Ucrânia, e líderes como Trump e Lula dão a entender que ficará tudo bem se ele ficar com (só) mais um pedaço do país. Só não vê a semelhança, só ignora o risco, quem quer.

Lula poderia ir a Moscou a qualquer tempo, mas escolheu este momento simbólico, em que as democracias celebram a vitória contra as tiranias, para confraternizar com Putin, Xi Jinping, Maduro e mais dúzia e meia de liberticidas. Não é apenas ignorância histórica e estupidez política, é a mais grave agressão diplomática (depois de muitas) às democracias europeias até agora. Ela terá consequências.

Lula, alvo de uma tentativa de golpe de Estado, vive elogiando e defendendo a democracia, mas suas ações contrariam suas palavras. Karl Marx escreveu que o critério da verdade é a prática, e a prática de Lula mostra que sua defesa da democracia é da boca para fora. Só vale em benefício próprio.

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Tapa na cara

Por William Waack, O Estado de S. Paulo, 8/5/2025.

Há certo consenso sobre o que se impõe a potências médias como o Brasil em meio à nova desordem mundial. Na linguagem acadêmica, trata-se de manter uma “neutralidade pragmática” em função de “inteligência estratégica”.

Significa manter-se fora do eixo principal de conflito geopolítico entre EUA e China, evitando aderir a um dos lados. E olhar para oportunidades com um sentido estratégico, para bem além de ganhos comerciais de curto prazo — que são, no fundo, as “migalhas” que caem do tabuleiro no qual brigam os gigantes.

É o que está em boa parte em teste na viagem de Lula a Rússia e China. Na qual, para um país como o Brasil, o “gesto” acaba virando “substância”. Colocando em risco neutralidade e estratégia.

No caso da China, a questão da neutralidade é grave não só pela imensa importância daquele mercado para as commodities agrícolas e minerais brasileiras (que já leva os chineses a considerarem o Brasil um “perigo”). Como ser um “amigo neutro”?

E dimensão do perigo está no fato de que EUA e China disputam sobretudo a supremacia da inovação tecnológica (e militar). Não começou com Trump o esforço americano de impor um cerco à China na aquisição e desenvolvimento de chips para inteligência artificial, por exemplo. Postura que está sendo ampliada para quem Washington enxergue como aliado chinês.

China e Rússia são hoje um bloco de grande coesão na formidável guerra fria em curso. É possível que Lula se inspire em Getúlio Vargas, o único personagem da história brasileira que considera à sua altura. Como é notório, Vargas nutria grandes simpatias pelas potências do Eixo antes da Segunda Guerra, e extraiu um preço dos Estados Unidos para ceder o uso de bases no Nordeste.

Mas o que Lula talvez esqueça é que Vargas entrou na guerra. Cerca de 25 mil soldados brasileiros combateram a partir de junho de 1944 na Itália contra a Wehrmacht. E o Brasil entrou do lado “certo”, isto é, do lado das potências ocidentais cujos sistemas de governo, instituições e valores são os que o Brasil considera os pilares da própria democracia.

Não é à toa que esses países comemoram o Dia da Vitória em data diferente daqueles, como Vladimir Putin, que consideram o desaparecimento da União Soviética como um triste acontecimento. Não tem a ver com o dia no qual os generais alemães assinaram nos arredores de Berlim a capitulação incondicional (8 de maio com os aliados ocidentais, 9 de maio com o Exército Vermelho).

Nossos soldados lutaram e morreram pela democracia. Celebrar essa vitória ao lado de Putin é dar um tapa na cara deles.

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Presença de Lula ao lado de Putin enfraquece coerência do Brasil

Por Carlos Gustavo Poggio (*), Folha de S. Paulo, 8/5/2025

Na política internacional, os gestos falam tanto quanto os tratados. A presença do presidente Lula (PT) em Moscou, ao lado de Vladimir Putin, durante o Dia da Vitória, em meio ao boicote da maior parte das democracias liberais, é um desses gestos que moldam percepções e alteram expectativas.

O Brasil afirma neutralidade no conflito entre Rússia e Ucrânia, mas os sinais que emite indicam outra coisa. Desde o início da guerra, o governo brasileiro buscou evitar alinhamentos formais. Recusou o envio de armas à Ucrânia, defendeu o diálogo com todas as partes e se colocou como potencial mediador.

Mas há limites para esse equilíbrio —e eles se tornam claros quando o comportamento do Brasil começa a se afastar dos princípios que historicamente defendeu.

A crise de coerência se aprofundou em 2023, quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão contra Putin por crimes de guerra, pela deportação forçada de crianças ucranianas. O Brasil é signatário do Estatuto de Roma desde 2002 e teve papel importante na legitimação do tribunal.

Ao contrário das grandes potências militares, que se mantêm fora da jurisdição do TPI, o Brasil viu no tribunal uma ferramenta de equilíbrio e justiça internacional. Ainda assim, Lula declarou: “Se ele vier ao Brasil, não será preso de jeito nenhum. Quero muito estudar essa questão desse Tribunal Penal, porque os Estados Unidos não são signatários, a Rússia não é signatária —então por que o Brasil tem que ser?”

A pergunta ignora não só compromissos legais, mas o papel histórico que o Brasil buscou exercer na defesa de normas internacionais. A presença em Moscou reforça a imagem de um país que, na prática, afasta-se das democracias liberais e se aproxima de um grupo revisionista.

Evidentemente o revisionismo, por si só, não é um defeito. Críticas à ordem internacional vigente, marcada por desigualdades e hipocrisias, são legítimas. Mas o desafio é ir além da pauta negativa: não se trata apenas de rejeitar o que existe, e sim de propor algo melhor. Que tipo de ordem o Brasil deseja construir? Uma crítica sem alternativa se torna ruído. Um projeto construtivo exige coerência, clareza e aliados adequados.

Putin já deixou claro que defende uma nova ordem multipolar. Até aí, sem problemas: diversificar parcerias é benéfico ao Brasil. Mas a multipolaridade que interessa ao Kremlin remete à lógica do século 19, baseada na força e em esferas de influência. Ironicamente, a visão russa de ordem internacional hoje se alinha mais à lógica nacionalista e transacional promovida pelo trumpismo nos EUA do que ao modelo cooperativo historicamente defendido pelo Brasil.

A conjuntura atual, marcada pela erosão da ordem liberal, abre uma janela de oportunidade para o Brasil propor uma visão de ordem mais inclusiva, baseada em regras, cooperação multilateral e respeito ao direito internacional. Mas isso exige coerência. Ao marcar presença em Moscou nesse contexto, o Brasil corre o risco de chancelar um modelo de mundo com o qual não deveria se comprometer.

Talvez setores da diplomacia brasileira vejam nessa aproximação uma tentativa de ressuscitar a ideia de um novo “grupo de não alinhados”, remetendo, em espírito, à Conferência de Bandung de 1955, quando líderes da Ásia e da África buscaram afirmar autonomia diante das pressões da Guerra Fria.

A conferência foi um marco da afirmação do chamado Sul Global, com ênfase em soberania e solidariedade entre países emergentes. Mas Moscou não é Bandung. A guerra na Ucrânia não é uma disputa entre blocos coloniais rivais, mas sim o caso de uma potência autoritária invadindo um país mais fraco e soberano. Nesse contexto, a impressão de apoio a regimes que desrespeitam normas basilares do direito internacional não fortalece a autonomia brasileira —enfraquece sua coerência

A força da política externa brasileira sempre esteve em sua capacidade de articular interesses com valores, construindo pontes sem abrir mão de princípios. Para continuar relevante no debate global, o Brasil precisa projetar estabilidade, previsibilidade e compromisso com uma ordem baseada em regras —não apenas de independência, mas de direção. Em política internacional, os gestos de hoje moldam as oportunidades de amanhã.

(*) Carlos Gustavo Poggio é doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, e autor de “O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos” (Unesp, 2010).

8/5/2025

 

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