Ornella

Ornella Vanoni talvez seja o melhor exemplo de como a música italiana e a música brasileira se dão bem, se trocam agrados, se interpenetram – se amam, enfim.

A mais bela gravação de “Detalhes”, melhor até mesmo, acho, que a maravilhosa de Roberto Carlos em seu álbum de 1971, é a de Ornella. A voz suave, ao mesmo tempo forte, marcante, o piano ao fundo – e a versão de Gino Paoli para os versos de Roberto & Erasmo é fiel e linda… “È inutile tentare di dimenticare / Per molto tempo ancora nella vita / Dovrai cercare / Dettagli così piccoli che tu / Non sei ancora in grado per capire / Ma che comunque contano per dire / Chi siamo noi”.

E a mais bela gravação de “Sentado à Beira do Caminho” é a de Ornella. A mais bela e a mais bem sucedida comercialmente: “L’Appuntamento”, a versão em italiano feita por Bruno Lauzi, foi um extraordinário sucesso mundo afora. Foi incluída na trilha sonora de Doze Homens e Outro Segredo (2004), de Stephen Soderbergh, e também na de Toscana (2022), um drama romântico dinamarquês.

Ornella parecia uma perfeita sambista carioca quando gravou “Tristeza”, de Haroldo Lobo e Niltinho, transformada em “Tristezza” – “Tristezza, / Per favore, vá via / Tanto tu in casa mia / No, non entrerai mai”. Lá pela metade, há um bom breque – e entra uma batucada de fazer inveja aos mais bambas das velhas guardas das escolas de samba.

Em 1976, Ornella chamou Vinicius de Moraes e Toquinho para gravar um disco com ela pela sua gravadora, a RCA Victor italiana. O disco teve o título de La Voglia, la Pazzia, l’Inconscienza, l’Alegria – o desejo, a insanidade, a inconsciência, a alegria. No repertório, várias canções da dupla Toquinho & Vinicius, quatro de Baden & Vinicius, uma de Paulinho da Viola, “Sinal Fechado”, “Semaforo Rosso” e uma de Toquinho & Chico Buarque, “Samba per Vinicius”.

Para fazer a versão das letras para o italiano, Ornella convidou Sergio Bardotti – que já havia feito a mesma coisa com nove pérolas do jovem Chico Buarque para o álbum Chico Buarque na Itália, lançado em 1969, quando o compositor estava auto-exilado na Itália. (Esse álbum foi o quarto de Chico e o último pela RGE; em seguida viria o primeiro pela Philip-Phonogram, depois PolyGram, Chico Buarque de Holanda nª 4, de 1970.)

Bardotti já havia também passado para o italiano a letra de “Chuva, suor e cerveja”, em 1974, para Ornella apresentar na X Mostra Internazionale di Musica Leggera di Venezia. Há registro de que o público ficou um tanto surpreso e até escandalizado com o frevo – mas a grande dama de Milão não quis saber e gravou a música no ano seguinte, 1975, o ano em que nasceu minha filha. “La gente si trova, si tocca, ci prova / Si lascia e non ha nostalgia / La gente si chiama, si trova, si ama / Non piange per una bugia”. Ah, meu…

O álbum de 1976, La Voglia, la Pazzia, l’Inconscienza, l’Alegria – uma absoluta delícia, uma maravilha – só viria a ser lançado no mercado brasileiro em março de 1984, pela RGE, a gravadora da dupla Toquinho & Vinicius, certamente após um acordo com a RCA italiana.

Não consigo deixar de registrar aqui toda a relação das músicas do disco. (Até porque não me dá muito trabalho: tenho a relação já digitada, da época em que passei o LP para CD, lá atrás, em 2005, quando ainda ouvia, e ouvia muito, LPs e CDs…)

1 – Ornella Vanoni e Toquinho – Senza paura (Sem medo) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

2 – Ornella Vanoni – La rosa spogliata (A rosa desfolhada) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

3 – Ornella Vanoni, Vinicius & Toquinho – Samba della rosa (Samba da rosa) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

4 – Vinicius e Ornella Vanoni – Samba in preludio (Samba em prelúdio) (Vinicius-Baden, vers S.Bardotti)

5 – Ornella Vanoni – Anema e core (D’Esposito-Titomanlio)

6 – Ornella Vanoni, Vinicius e Toquinho – La voglia la pazzia (Se ela quisesse) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

7 – Ornella Vanoni e Toquinho – Semaforo rosso (Sinal fechado) (Paulinho da Viola, vers S.Bardotti)

8 – Vinicius – Assenza (Vinicius)

Ornella Vanoni e Vinicius – Io so che ti ameró (Vinicius-Tom, vers S.Bardotti)

9 – Ornella Vanoni e Toquinho – Un altro addio (Mais um adeus) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

10 e 11 – Vinicius – L’assente (Vinicius)

12 – Vinicius e Ornella Vanoni – Accendi una luna (Acende uma lua no céu) (Vinicius-Toquinho, vers S.Bardotti)

13 – Ornella Vanoni, Vinicius e Toquinho – Samba per Vinicius (Samba pra Vinicius) (Toquinho-Chico, vers S.Bardotti

Em “Io so che ti ameró”, há, como na gravação original, um recitativo de Vinicius, poeta e diplomata, o branco mais negro da Bahia, como ele se definia. No mais perfeito italiano: “Io lascerò /  / Tu andrai / E accosterai il viso a un altro viso / Le tue dita allacceranno altre dita / E tu sboccerai verso l’aurora / Ma non saprai che a coglierti sono stato io / Perche io sono il grande intimo della notte / Perché ho accostato il mio viso al viso della notte / Ed ho sentito il tuo bisbiglio amoroso / Ed ho portato fino a me la misteriosa essenza / Del tuo abbandono disordinato.”

Não sei exatamente quando, mas Ornella também gravou “Canta, canta, minha gente” e “Construção”, de Chico, e “Terra”, de Caetano.

E, em 2024, naquele que viria a ser seu último álbum, Ornella gravou, em dueto com um cantor novo, Mahmood, “Sant’Allegria” – uma versão de “Bem Leve”, de Marisa Monte e Arnaldo Antunes.

***

Faz tempo eu pensava em fazer um texto sobre essa história de amor entre a música brasileira e a música italiana. Para lembrar e registrar coisas assim:

* em 1968, meu primeiro ano em São Paulo, Roberto Carlos foi escolhido para cantar no Festival de San Remo “Canzone per te”, de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti.

* em 1977, quando Fernanda tinha dois anos, foi lançado o álbum Os Saltimbancos – que muita gente acredita ser uma criação de Chico Buarque. Não é. Os Saltimbancos é a tradução para o Português de I Musicanti, peça inspirada no conto Os Músicos de Bremen, com letras de Sergio Bardotti – olha ele outra vez aí, gente! – e música de Luis Enríquez Bacalov.

* em 1979, Sergio Endrigo, esse artista especial, extraordinário, gravou o álbum Exclusivamente Brasil, cantando, em português, com delicioso sotaque, canções de Dolores Duran, Chico Buarque, Baden & Vinicius, Dorival Caymmi, Toquinho & Vinicius. Toquinho & Vinicius compuseram “Samba para Endrigo” – e é uma absoluta delícia ouvir a voz maravilhosa de Endrigo cantando, com um toque carioquês, os versos “Sou tão batuqueiro / Quanto qualquer Tocador de pandeiro é. / Sou tão mandingueiro, / Tão brasileiro / Quanto um cidadão qualquer.”

* em 1995, Renato Russo gravou uma beleza de álbum, Equilíbrio Distante, só com músicas italianas.

* em 2006, o ano em que me aposentei das redações para escrever meus textos na calma da minha casa, Fiorella Mannoia gravou um álbum só com canções brasileiras, em que canta em dueto com os autores das músicas – Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Chico César, Gilberto Gil, Djavan, Carlinhos Brown, Lenine, Jorge Ben, Adriana Calcanhoto.

Há muito, muito mais exemplos. Não sei se um dia ainda escrevo esse texto. Este aqui, diacho, é simplesmente porque seria impossível não escrever sobre Ornella, quando soube que ela partiu para se encontrar com Vinicius, Erasmo, Renato, Endrigo, Luigi Tenco.

Ela gravou com Luigi Tenco “Se qualcuno ti dirà”,  uma das belas canções do grande compositor que não suportou o fato de não vencer o prêmio máximo de San Remo.

Luigi Tenco deveria ter ouvido a lição de Geraldo Vandré em 1968, quando o Maracanãzinho inteiro vaiou “Sabiá”, de Tom & Chico: “A vida não se resume a festivais”.

***

Euzinho aqui, quieto no meu cantinho, feliz no amor em paz com minha Marynha, me lembrei, ao saber da morte de Ornella, na cidade em que nasceu 91 anos atrás, de “Stupidi”.

Ouvi “Stupidi” (Shapiro-Limiti) até quase a agulha acabar com o vinil, ali no final dos anos 70, início dos 80, durante os tempestuosos anos do casamento com Regina. Ela não gostava de Ornella – e quanto mais ela não gostava, mais eu ouvia.

“Stupidi”, uma beleza de canção, tem alguns dos versos mais tenebrosamente tristes, duros e verdadeiros que há:

“ Che talento sublime /  per fare del male / che c’è nella gente.”

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Arrivederci, Ornella. Dê um abraço nos amigos que se foram antes, por favor.

21 a 24/11/2025;  

Um comentário para “Ornella”

  1. Caro Sérgio, mais uma vez tenho que elogiar seu incrível talento para a área musical ! Excelente trabalho jornalístico sobre a Ornella incluindo ai uma enorme coincidência. Acredite você, eu não conhecia a versão de L’appuntamento. Recentemente (2/11) vendo um filme dinamarquês “Toscana” tocou essa música em algum momento e eu fiquei de orelhas em pé, pois não conhecia essa versão. Ao pesquisar vi que era da Ornella. Êta mundo pequeno. Continue escrevendo sobre o que gosta. Abração

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