Infelizmente, muitos brasileiros estão absorvendo o conceito errôneo que os norte-americanos criaram para o termo “latino”. Para eles, são uns sujeitos bigodudos, de sombrero mexicano, que falam espanhol, comem tacos, dançam rumba nas ruas, e moram abaixo do Rio Grande.
E, sobretudo, não são brancos. Mesmo que alguns argentinos, mexicanos, brasileiros, uruguaios, sejam obviamente brancos, é impossível classificar latino como branco no EUA.
Em 2021, a atriz Anya Taylor-Joy, loira, vencedora do Globo de ouro pela série O Gambito da Rainha, da Netflix, foi chamada pela revista americana Variety como “mulher de cor”.
Motivo? Descobriram que ela é argentina, portanto, uma mera latina, não mais uma branca.
Os americanos são famosos por desconhecerem profundamente a História e a Geografia do mundo fora das suas fronteiras. Desconhecem até cidades e estados importantes do seu próprio país. E querem se arvorar a redefinir o que é um latino.
Criaram um novo conceito, totalmente errado: entenderam que a denominação teve origem no fato de essas pessoas habitarem uma parte do continente que, não sabem exatamente por qual motivo, foi batizada de América Latina.
Ora, é justamente o contrário: o nome América Latina foi criado porque o território foi colonizado por povos de língua e cultura latinas. Em sua maioria espanhóis e portugueses, mas também franceses, na Guiana, Haiti, ilhas do Caribe e, posteriormente, muitos imigrantes italianos, na Argentina e no Brasil.
Não me refiro aos acadêmicos, que conhecem bem a definição histórica de povos latinos, mas sim ao americano médio, que aprendeu sobre o assunto nos filmes de Hollywood, sabidamente capazes de distorcer a História de todas as civilizações.
Deram ao termo uma absurda conotação étnica, até mesmo racista, quando ela é essencialmente cultural, e abrange uma diversidade de etnias, do romeno ao português.
Porém, a influência da TV, do cinema, enfim, da cultura dos EUA, foi tão forte no nosso país, que hoje existem brasileiros se orgulhando de não serem classificados como latinos pelos americanos, por não falarem espanhol. Devem estar mudando de idéia agora, com as deportações racistas de Trump.
Para a Geografia, a História, e para os países europeus, o termo latino inclui todos os povos de regiões que foram incorporados ao Império Romano durante longo período. Esses povos, posteriormente, desenvolveram línguas derivadas do latim, também conhecidas como línguas românicas, ou neolatinas
Sem esquecer de seus descendentes no continente americano.
Não resta dúvida, em nenhum livro de História, que são de língua e cultura latina os italianos, espanhóis, franceses, portugueses, romenos, parte dos belgas de língua francesa, dos suíços que falam francês ou italiano. Também são países latinos Mônaco, Vaticano, San Marino, Andorra e Moldávia.
Todos herdeiros culturais do Império Romano, falantes de línguas românicas.
O mesmo pode ser dito sobre o Quebec canadense, que fala outra língua derivada do latim vulgar, o francês.
Aliás, me lembrei agora o quanto me senti em casa, quando, após ter atravessado a Suíça germânica, cheguei em Lugano e em Bellinzona, na Suíça italiana.
Percebi, de cara, que ali havia alguma coisa bem familiar, apesar da neve: a língua, a comida, o comportamento mais descontraído e amistoso das pessoas, que inclusive acenavam para mim das janelas, enquanto eu percorria as ruas residenciais, cheio de curiosidade. Eram muito mais propensas a iniciar uma pequena conversa do que seus vizinhos da Suíça germânica, a poucos quilômetros dali.
E, até hoje, me sinto um pouco em casa quando me atrevo a fingir que consigo ler alguma coisa nos jornais de um país situado na distante Europa Oriental, a Romênia.
Certa vez, quando trabalhava na Alfândega de Brasília, eu disse, brincando, para um diplomata romeno, a seguinte frase, em português: “Nesta casa, com um quilograma de carne de vaca, não se morre de fome, com um copo de vinho, não se morre de sede”.
Ele arregalou os olhos e respondeu: “Isso é romeno! Você acabou de citar um dos ditados populares mais conhecidos da Romênia”.
Eu já sabia, claro. Sabia, inclusive, que o ditado era conhecido em Portugal, e que a pronúncia nas duas línguas era muito parecida.
Mais tarde, ele foi correndo lá fora, chamar o embaixador, que estava desembarcando, para apresentar o brasileiro que conhecia o ditado popular, a história do Conde Vladimir Dracul – Vlad, o Empalador, mais conhecido como Drácula – e também lia jornais romenos na internet.
Vejam, americanos, que até o Drácula, da Transilvânia, região da Romênia, era latino.
Conversamos alguns minutos sobre as diversas palavras bastante similares existentes nas duas línguas.
Eu já conhecia, mas, no final, eles fizeram questão de me mostrar como se escreve, em romeno, o ditado que eu havia pronunciado:
“In această casă cu un kilogram de carne de vacă nu se moare de foame, cu un litru de vin nu se moare de sete”.
Colocando a frase no Google tradutor, pode-se ouvir a pronúncia em romeno. Você vai notar, na hora, que nós, brasileiros, romenos e portugueses, somos primos latinos.
Queiram os cowboys americanos ou não.
Fiquei surpreso ao saber que essa distorção americana chegou até à National Geographic. O conceito não é aceito na Europa, por causa da sua conotação racista, coisa típica de americanos. E nem onde se conhece História e Geografia. Trata-se apenas do famoso desconhecimento norte-americano sobre o mundo exterior, multiplicado pela força que têm na mídia.
Usam erroneamente o termo latino como uma definição étnica, quando, na verdade, é uma definição cultural, destacadamente linguística. Franceses, romenos, portugueses, espanhóis, italianos, não pertencem ao mesmo grupo étnico; são ligados somente pela cultura e as línguas neolatinas.
Mas essa distorção é algo bem recente. Até poucos anos atrás, os filmes, a literatura e a imprensa dos EUA destacavam o forte temperamento latino dos italianos e franceses. Ou o “charme latino” de divas italianas, como Gina Lollobrigida, Sophia Loren, Cláudia Cardinale. Ou, ainda, o temperamento latino, às vezes espalhafatoso, dos personagens interpretados por Marcello Mastroianni.
Também classificavam como “divas latinas” estrelas francesas como Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, Isabelle Adjani, Fanny Ardant, Juliette Binoche.
E era usadíssima a expressão “latin lover”, desde os anos 1920, para os atores de origem latina, como o italiano Rodolfo Valentino.
De qualquer forma, ninguém esquece que alguns filmes americanos, quando representam povos e costumes de outros países – europeus, asiáticos, latino-americanos -, causam gargalhadas de surpresa, ou até muita indignação.
Hoje, os americanos evoluíram: chegaram finalmente ao ponto de achar que os próprios italianos não são latinos. Logo os italianos.
Este texto foi originalmente publicado no Quora, o site em que são respondidas perguntas enviadas por leitores. Essa foi a resposta que Luiz Carlos Toledo Pereira deu à pergunta “Os portugueses são latinos?”