É uma conjuntura inevitável da política: governos isolados e em queda drástica de popularidade devem rapidamente ampliar seu arco de alianças. As expectativas eram de que o presidente Lula utilizaria a reforma ministerial para fazer tal movimento, trazendo para o núcleo duro de seu governo, instalado no Palácio do Planalto, algum parlamentar dos partidos de centro.
Em vez disso, Lula resolveu dobrar a aposta, escolhendo Gleisi Hoffman como ministra das Relações Institucionais. O movimento em direção a um governo de esquerda puro-sangue deve se completar com a possível escolha de Guilherme Boulos para a Secretaria Geral da Presidência.
A guinada à esquerda não se manifesta apenas na reforma ministerial realizada a conta-gotas. Está também na retomada das relações umbilicais de Lula com o Movimento dos Sem Terra, em medidas com vistas a inflar o consumo, como liberação de crédito e do FGTS, sem falar na ameaça de “tomar medidas drásticas” se o preço dos alimentos continuar nas alturas. A agenda do controle da dívida pública sai do cenário, quase na mesma proporção em que a estrela do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se ofusca pela presença de Gleisi no Palácio do Planalto.
O movimento de Lula vai na direção do que clama o seu partido de priorizar alianças com a esquerda, delegando aos partidos do “Centrão” um papel quase ornamental em seu governo. Quem esperava uma reforma ministerial na qual o PT perderia espaço enganou-se profundamente. Ao contrário, o Partido dos Trabalhadores fortaleceu suas casamatas. Se antes a reforma estava pensada como caminho para ampliar as alianças dentro do Congresso – a ponto de ter sido cogitada a indicação do líder do MDB Câmara, Isnaldo Bulhões, para a Articulação Política -, a grande indagação é saber por que Lula decidiu mudar de rota.
Para decifrar o enigma é bom levar em conta uma frase do presidente, no ato da última sexta-feira com o MST, em Campo do Meio, Minas Gerais: “Quem são meus amigos? São vocês. Nunca esqueço quem são. Sei quem é amigo de verdade e quem é amigo ocasional só porque sou presidente”.
Eis aí a primeira explicação: Lula desconfia dos chamados “amigos de ocasião”. Ou seja, dos partidos de centro-direita que aderiram ao seu governo não por identificação programática, mas pela irresistível atração que o poder exerce. Nas suas contas, esses partidos não estarão em seu palanque em 2026, salvo aconteça o milagre de a aprovação de seu governo voltar a subir.
Apostar numa “agenda popular”, mesmo sem sustentabilidade fiscal, aparece como a única alternativa para disputar a pole position na próxima disputa presidencial. Assim, a guinada à esquerda o leva a estreitar os laços com os “verdadeiros amigos” e tratar os “amigos de ocasião” como passageiros de um ônibus prestes a desembarcar na próxima parada.
A unção de Gleisi para as Relações Institucionais reflete não apenas o giro à esquerda, mas também o foco do que é, desde já, a prioridade de Lula: a sua reeleição. Tudo – absolutamente tudo – no governo estará subordinado a esse objetivo. Até mesmo a política econômica. Se ela não produzir fatos que turbinem a popularidade do presidente, às favas com a responsabilidade fiscal.
Entrevistas como a de Ciro Nogueira, presidente do PP, pregando a saída de seu partido do governo, alimentam a possibilidade de uma revoada no segundo semestre se a aprovação do governo estiver no patamar de hoje.
Na nova estratégia de Lula, uma peça fica meio deslocada: a candidatura de Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara, para presidir o PT a partir de julho. Ela foi pensada em outro momento político, quando o objetivo do presidente era uma maior aproximação com o centro com vistas a assegurar a governabilidade. De perfil moderado, Edinho defende o estabelecimento de pontes, até mesmo com eleitores que votaram em Bolsonaro, e o fim da polarização que deu o tom na última disputa presidencial.
Edinho é o peão que pode ser sacrificado no gambito da rainha. Contra sua candidatura forma-se uma “frente ampla” no interior do PT, que vai de Gleisi Hoffman e José Guimarães, líder do governo na Câmara, passando por Washington Quaquá, Jilmar Tato e podendo ser engrossada por outros luminares petistas como Ruy Falcão. A fritura de Edinho aconteceu em uma reunião na casa de Gleisi, da qual Lula estava presente. Após a reunião, alguns participantes vazaram para a imprensa que Lula já não apoiava o nome de Edinho. Em vídeo gravado em reunião do PT em Matão, o ex-prefeito de Araraquara acusou seus adversários internos de instrumentalizar Lula na luta interna do partido.
Inescapável responsabilizar Gleisi Hoffman pela crise instalada no PT. O certo é que Edinho Silva está enfraquecido e sua candidatura para dirigir o partido subiu no telhado. Dele escapará se Lula mudar novamente de idéia.
Também a conferir como fica Haddad no giro à esquerda do governo. Em seu discurso de posse, Gleisi fez um afago ao ministro da Fazenda. Mas a pressão sobre a política econômica, que Gleisi Hoffman já chamou de “austericídio”, aumentará na proporção em que as medidas adotadas por Lula para conter a inflação de alimentos não surtam o efeito desejado. De qualquer forma, o ministro da Fazenda vem perdendo status de herdeiro de Lula e o ingresso de Gleisi no Palácio do Planalto aumenta o número de rivais de Haddad, até mesmo como substituto de Lula.
Sem um projeto para o país ou sintonia com o que acontece no planeta, a guinada à esquerda de Lula tem tudo para ser uma fuga para a frente, geradora de novas dificuldades para o governo.
A análise das razões de Lula para promover essa inflexão não estão esgotadas. Não se pode descartar nem mesmo uma explicação mais elementar: Lula está perdido, sem saber o que fazer diante de um mundo bem mais complexo do que o de quando foi presidente pela primeira vez.
Nessas condições, e diante do risco de terminar sua carreira política com uma derrota política, Lula deveria refletir sobre o conselho dado por Sarney: “é melhor sair da política muito bem do que já velho”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 12/3/2025.