A História na encruzilhada

Vivemos aqueles momentos descritos por Gramsci nos quais “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”. Neles, como afirmou o filósofo italiano, “uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

De fato, a morbidez anda à solta. Volodymyr Zelensky foi humilhado por Donald Trump ao vivo e a cores no salão oval da Casa Branca e o governo americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia, até que o presidente ucraniano aceite os termos da “Pax trumpista”. Aquela do “manda quem tem poder, obedece quem é mais fraco”.

Para completar a ópera, nesta terça-feira entraram em vigor as tarifas de 25% das exportações do México e do Canadá para os Estados Unidos. Em relação a China, Trump dobrou a aposta: em vez de 10%, os produtos chineses serão tributados em 20%. De quebra, fez mais um mimo a Vladimir Putin ao determinar a suspensão de operações cibernéticas ofensivas contra a Rússia. A próxima será suspender as represálias econômicas adotadas quando da invasão da Ucrânia pela Rússia. Na lógica do presidente americano, a Rússia é uma força da paz. Ela só não vem pela teimosia de Zelensky.

São sinais mórbidos do fim da ordem mundial do pós Segunda Guerra Mundial, baseada no multilateralismo, na cooperação econômica e no livre circular das mercadorias. Em seu lugar está sendo gestada uma nova ordem mundial, na qual os valores do mundo democrático que por 80 anos balizaram as relações multilaterais vêrm sendo substituídos por uma visão mercantilista na relação desigual entre os mais fortes e os mais fracos.

É como se o mundo estivesse retroagindo ao século XIX, quando as potências imperialistas dividiam o planeta entre si, com cada uma tendo suas esferas de influência. Nesse jogo bruto, quem “não tem cartas”, como disse Trump a Zelensky, é irrelevante, não joga. Tem de se submeter aos ditames do que pactuam os mais fortes. E quem é “irrelevante”, como a União Européia, fica de fora de uma solução para a guerra da Ucrânia.

Em vez do multilateralismo, o unilateralismo entrou em moda.  O livre comércio, um dos pilares dessa ordem, é substituído pelo isolacionismo e o protecionismo nas relações econômicas. A ironia da História é exatamente essa: o coveiro da velha ordem mundial, iniciada em 1945, é o país que dela mais se beneficiou e foi sua liderança moral e política por oito décadas: os Estados Unidos.

Nas novas relações que vão sendo forjadas pelo governo Trump, a aliança transatlântica, peça essencial do sistema de defesa do mundo ocidental, corre o risco de se esfarelar. Já não há a garantia de que os Estados Unidos cumpram o artigo 5 da OTAN, que determina a solidariedade de outros países do bloco, caso um de seus membros sofra um ataque militar por parte de outra nação. Em tempos de Murici, cada um cuide de sua defesa.

A percepção de que os Estados Unidos estão abdicando do seu papel de liderança do mundo ocidental e democrático provoca mal-estar entre os países da Europa. Tal incômodo foi verbalizado pelo chefe da diplomacia da União Europeia, Kajas Kalla, ”Fica claro que o mundo livre  precisa de um novo líder. Cabe a nós, europeus, assumir esse desafio”. É daí que pode surgir um líder com potencial de desempenhar o papel similar ao de Roosevelt ou de Churchill, na Segunda Guerra.

Escanteada por Trump nas negociações para o fim da guerra da Ucrânia, a Europa se recusa a ser mera expectadora de uma crise cujas chamas podem se alastrar pelo continente. Mais do que nunca, faz sentido a analogia usada por Franklin Roosevelt para justificar a Lei de Empréstimos e Arrendamento (Lend-Lease). O então presidente americano comparou o apoio dos Estados Unidos a emprestar uma mangueira a um vizinho cuja casa está pegando fogo.

A lógica de Roosevelt era de uma clareza meridiana: ajudar o vizinho a apagar o fogo era de interesse de todos, pois se o fogo se espalhasse a casa do próprio dono da mangueira poderia ser a próxima a queimar. Roosevelt foi o grande líder dos aliados que, ao final, derrotaria o nazismo. Ele não estava preocupado com uma conta mesquinha de como os Estados Unidos seriam ressarcidos dos valores emprestados aos britânicos, à União Soviética e outros países. Estava focado na segurança global e, por tabela, na própria segurança do seu país.

Essa consciência é a dos líderes europeus e da OTAN, excetuando-se Donald Trump. O presidente não vê que seu próprio telhado pode ser atingido pelo fogo. Hoje é a Ucrânia, amanhã Putin pode invadir outros países, como a Letônia, a Lituânia, a Estônia, a Geórgia. Não há garantias de que o autocrata russo não tente concretizar o seu sonho de reconstruir o antigo império czarista. Ele mesmo já disse que o colapso da antiga União Soviética foi ”a maior catástrofe geopolítica da história”.

Se a Rússia pode ir por esse caminho, o que impedirá a China de avançar para cima de Taiwan? Ou mesmo Trump de usar a força para tomar a Groenlândia? A lei do mais forte paira sobre a cabeça da humanidade, como uma espada de Dâmocles.

A Europa recusa-se a desempenhar o papel de Chamberlain, no Acordo de Munique de 1938. À época, o então primeiro-ministro britânico pressionou o presidente da Checoslováquia, Edward Bernes, submetendo-o a humilhação de ceder os Sudetos a Hitler. Chamberlain voltou de Munique acenando um papel, alardeando que tinha conseguido “a Paz para nossos tempos”.  Um ano depois Hitler invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra. A premonição de Churchill se concretizou: “entre a desonra e a guerra, escolheram a desonra e terão a guerra.”

Diante do anunciado desengajamento dos Estados Unidos na ajuda militar aos ucranianos, a União Européia prepara um plano de 800 bilhões de euros para defesa própria e da Ucrânia. Na Europa está em jogo não apenas a soberania da Ucrânia, mas também os valores fundantes da ordem mundial estabelecida após a derrota do nazismo e que pautaram a reconstrução do velho continente por meio do Plano Marshall. Tais valores foram os vitoriosos ao final do século XX, com o fim do “socialismo real” e da própria União Soviética.

Hoje a história novamente encontra-se numa encruzilhada. A questão é saber se a nova ordem baseada na divisão de áreas de influência entre as potências econômicas, militares ou políticas – EUA, China, Rússia, Arábia Saudita – se imporá, ou se os valores da velha ordem, uma herança do iluminismo, encontrarão forças para se reinventar.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, erm 5/3/2025.

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