Só Kamala salva

Aflição e medo. Não era assim que o mundo costumava enxergar as eleições nos Estados Unidos, país símbolo da democracia que até pouco tempo a exalava por todos os poros. Tudo mudou com Donald Trump – e pode piorar ainda mais. Se Trump vencer, consolida-se a ideia de que os fins justificam os meios sórdidos, as mentiras e as ilegalidades. Se perder, ele não aceitará a derrota, assim como fez em 2020, minando ainda mais a confiança dos americanos nos pilares da democracia. Para Trump, modelo para outros democratas de araque, a conta é simples: ou ele vence ou a eleição não vale.

Pesquisa da CNN aponta que apenas 30% dos eleitores registrados acham que Trump aceitaria os resultados da eleição em caso de derrota. Ou seja, a maioria sabe que Trump joga com as regras da democracia mas não tem pretensão alguma de segui-las. No mesmo levantamento, 73% creem que a candidata democrata Kamala Harris reconheceria um revés eleitoral.

Kamala e Trump estão empatados na corrida, com diferenças inferiores às margens de erro das pesquisas. Nos Estados Unidos o voto não é obrigatório e em vários estados os eleitores são registrados de acordo com o partido de sua preferência (Democrata, Republicano ou independente).

Nas últimas semanas, Trump voltou a insistir na tecla de fraude eleitoral. Nos palanques montados nos chamados estados-pêndulos (Pensilvânia, Georgia, Michigan, Arizona, Carolina do Norte, Wisconsin e Nevada), que entre uma eleição e outra pendem ora para republicanos, ora para democratas, ele tem reforçado a mentira de que ganhou do presidente Joe Biden em 2020. Não só nesses colégios eleitorais mais apertados, mas também em estados historicamente democratas, como Califórnia e Nova York. “Se Deus fosse o contador de votos eu venceria por uma margem esmagadora”.

Em sua rede social, a Truth Social, Trump dispara dia sim outro também que há fraudes generalizadas acontecendo em todos os estados em que se realizam eleições antecipadas, com votos diretos ou pelo correio, métodos usuais nos Estados Unidos. Na quinta-feira, denunciou trapaças e corrupção na Pensilvânia, estado-chave no qual ele pretendia anular de pronto formulários para votos antecipados investigados pelo próprio sistema eleitoral da região.

Embora a Suprema Corte tenha impedido a anulação, permitindo ao eleitor o direito de ratificar presencialmente a sua opção, Trump continuará insistindo que está sendo roubado.

Os militantes da Make America Great Again (MAGA), grupo de extrema direita inspirado em Trump, que desenhou parte de seu programa de governo, incluindo a eliminação de imigrantes e a força total para combustíveis fósseis – drill, baby, drill (perfure, baby, perfure) –  em plena emergência climática, têm atuado fortemente para tumultuar com falsas denúncias de fraudes. Entram com dezenas de ações por dia.

Ao repetir a tática de desacreditar previamente o resultado eleitoral, Trump pretende, com uma só tacada, pressionar as instituições americanas e engajar ainda mais seus radicais. Sua tropa fiel já mostrou do que é capaz quando, estimulada pelo líder, invadiu o Capitólio para impedir a certificação de Biden como presidente eleito, em 6 de janeiro de 2021.

Não à toa, Kamala Harris escolheu o Ellipse, ao Sul da Casa Branca, em Washington, para o encerramento da fase de grandes comícios da campanha, na última terça-feira. “É o candidato do caos, da divisão… um projeto de ditador”, disparou a candidata democrata, no palanque montado no mesmo lugar onde, há quase quatro anos, Trump conclamou a multidão a “caminhar até o Capitólio” para “salvar a América”: “Vocês nunca recuperarão nosso país se forem fracos”, disse, incentivando os seguidores a “lutarem contra o demônio”.

Trump se lixa para o que Kamala ou qualquer um diz. Vai continuar barbarizando, virando notícia a qualquer custo, fazendo com que todos falem dele, mesmo que seja para xingá-lo. Como pela sua lógica ele já venceu, tudo somaria a seu favor. E se os votos não vierem, ele está preparado para contrariar a vontade da maioria e se dizer novamente roubado.

Uma lógica explosiva não só para os Estados Unidos, mas para o resto do planeta. Uma eventual vitória de Trump derrota a civilidade, impondo a lei do vale tudo, sem regras ou respeito mínimo pelo outro. Pode enterrar de vez a crença na democracia da forma que a conhecemos. Sua derrota viria como alívio. Ainda assim não será fácil: Trump não vai reconhecer que perdeu, fazendo com que os Estados Unidos sangrem.

Sem tergiversar, só Kamala salva.

A aflição é tanta que a ateia aqui se permite pecar: que todos os santos, orixás, deuses daqui e de acolá iluminem os eleitores da América de cima.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 3/11/2024. 

Um comentário para “Só Kamala salva”

  1. Perfeito e esclarecedor, com um retrato da situação que eu não havia visto antes, este texto de Mary Zaidan. Esse Trump é muito pior do que se podia imaginar.

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