O golpe de 8/1 não deu certo porque os golpistas perderam o tempo da história meio ano antes. Felizmente, para a democracia, não souberam fazer quando tinham a faca e o queijo na mão. Os comandos das Forças Armadas já estavam embarcados de cuia e mochila na aventura, mas assim mesmo o grande plano (urdido desde 2015 por Villas Bôas) fracassou.
O governo Biden teve um papel decisivo no abortamento do golpe, mandando para cá, em 27 de julho de 2022, seu secretário da Defesa, acompanhado do chefe do Comando Sul dos EUA. Portavam um recado duro num momento crítico, quando o protoditador eleito em 2018 estava mais assanhado do que nunca para dar o golpe. Ele antevia uma derrota eleitoral e tinha pressa.
O secretário americano e seu auxiliar jogaram água fria na fervura. Se derem um golpe, não terão o apoio dos EUA e haverá consequências. Nunca vi Tio Sam enfurecido contra um golpe de estado de direita em seu quintal. Como os tempos mudaram…
Outros governos também foram duros, mas nenhum arreganhou os dentes como o de Biden. O protoditador acovardou-se, passando a tramar o golpe mais atrás das cortinas do que na boca do palco.
Mas o estrago já estava feito. Os mais enfezados dentro das Forças Armadas perderam o controle sobre os movimentos peristálticos. Em outras palavras, borraram-se.
Por sorte, um psicopata sem muito preparo sempre pisa no tomate na hora H. Pra que foi desfilar e se exibir ante os embaixadores, logo aqueles dentre os quais havia a nata da diplomacia ocidental?
O pavão abriu as penas em 18 de julho de 2022, quando disse a uma platéia seleta, por ele chamada ao Palácio do Planalto, o que bem quis sobre sua idéia torta de democracia e sistemas de votação eletrônicos. Ora, o sistema brasileiro é apreciado no mundo inteiro como um modelo exemplar, absolutamente seguro e auditável de cabo a rabo, desde um ano antes das eleições até depois delas — se o interessado não se importar em passar vergonha (como passou Aécio na reeleição de Dilma ao pedir a recontagem).
O pavão esqueceu o ditado popular de que em boca fechada não entra mosca (nem sai jacaré). Talvez porque a certeza do golpe fosse tal que abrir a boca não ia fazer a criança perder o doce.
Perdeu não só o doce como a elegibilidade até 2030. E na posse de seu “inimigo”, 70 delegações estrangeiras compareceram — um recorde!
Sorte a nossa. Não que eu pense que o golpe do embusteiro ia dar certo. Mas a perturbação de uma quartelada mexicana com aqueles tanques fumacentos e roncando as tripas na Praça dos Três Poderes ia nos tirar um certo sossego pré-eleitoral.
O alucinado não tinha a força e competência do Castello Branco e a coragem do aloprado Mourão Filho — autodenominado “a vaca fardada”, que saiu com sua tropa de um quartel em Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro (teria errado o caminho para Brasília), em 31 de março de 1964, antecipando o golpe de Castello para 1° de abril. Data, aliás, que os milicos não aceitaram de jeito nenhum, preferindo retroceder a 31/3 e dar as glórias à “vaca fardada”.
A diferença daquele 1° de abril para este 8 de janeiro não é só de incompetência. Em 1964, a vasta maioria da população queria o golpe, acreditando, embasbacada, que os milicos iam dar jeito em tudo, depois de fuzilar os comunistas embaixo das camas. Já em 2022, pesquisas mostram que o apoio ao querido golpe do ex-capitão não passava de 6% das pessoas maiores de 16 anos de idade (população apta a votar) e estava concentrado no gado bolsonarista.
Para dar certo, o desejo golpista tem que estar disseminado por toda a sociedade. Basta ler um pouco sobre as revoluções e golpes de estado nos séculos 19 e 20.
O do maníaco psicopata e assassino Adolfo funcionou porque a Alemanha quase inteira e idiotizada pela mentira acreditou nele. Aqui, o adorador de torturadores e milicianos homicidas só conseguiu convencer uma minúscula parte de seu próprio gado.
Mas os números escondem um alerta importante. Numericamente, 6% representam 9,3 milhões de pessoas num país de 156 milhões de eleitores. Pouco para sustentar um golpe? Sim, mas onde arrumar cadeia para tantos? Os 1.354 presos no 8/1 couberam dentro das quadras do Exército em Brasília. Mas 9 milhões caberiam onde?
Deixar toda essa gente solta por aí é uma temeridade. Esperar que se convertam à democracia é uma ingenuidade. Botar tornozeleira eletrônica em cada um é uma impossibilidade.
Honestamente, eu acho que a resposta é mais democracia, mais justiça social, distribuição de renda e oportunidades, mais Educação para a vida e a cidadania, mais consciência e respeito pelos valores civilizatórios, mais humanidade e empatia. E muitos outros “mais”. Dentro das famílias, dentro das empresas, dentro das escolas, no trânsito e outras partes — onde passamos a maior parte de nossas vidas. É isso que vai tirar o chão dos golpistas.
Xandão não resolve todas nem tudo. Sou a favor da celebração da vitória da democracia todos os anos no 8/1. Essa celebração não é de Lula e do PT, é deles e de todos os democratas. Quem for contra é golpista.
Mas também essa vitória não é tudo. Temos muito trabalho pela frente, levaremos algumas centenas de anos e gerações para chegarmos lá. Serão tempos duros, durante os quais habrá que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e sonhador, que parte agora para férias de verão. Hasta la vuelta.
11/1/2024