Só quem hoje tem mais de 50 anos de idade guarda na memória os terríveis tempos em que a hiperinflação era um tormento na vida dos brasileiros. Para as novas gerações fica difícil imaginar como eram aqueles tempos, nos quais as pessoas travavam uma corrida diária e enlouquecedora contra a maquininha de remarcação de preços. Essa era a realidade do Brasil entre os anos 1979 e 1994, quando a inflação crescia, em média, 16% ao mês. Essa marcha da insensatez foi interrompida em 1º de julho de 1994, quando o Real passou a ser a moeda brasileira.
O país vinha de diversos planos fracassados, de tentativas de controlar a inflação cortando-se zeros de sua moeda ou congelando preços. Foram 18 zeros cortados. Sem esses cortes os brasileiros se veriam na mesma situação da Alemanha do início dos anos 1920, quando as pessoas levavam carrinhos de mão cheios de dinheiro para fazer suas compras.
O primeiro desafio do Plano Real era vencer a incredulidade e o ceticismo quanto à possibilidade de dar certo. Os brasileiros eram como gato escaldado, tinham medo de água fria. Não era para menos. O Real foi a oitava moeda brasileira, desde 1942, quando os réis deram lugar ao cruzeiro, ainda no Estado Novo de Getúlio Vargas.
Cassandras e oráculos vaticinavam: o Real teria o mesmo destino de planos anteriores, como o Plano Cruzado I e II, Plano Bresser, Plano Collor, todos eles fracassados e de amarga experiência. Do alto de sua sapiência, Delfim Neto dava quatro meses de vida ao Plano Real. Dez anos depois, ainda não tinha dado o braço a torcer. Já se vão 30 anos e as premonições catastrofistas não aconteceram. O Real é a mais longeva moeda brasileira, desde 1942.
A que se deve tamanho feito?
O segredo foi não ter segredo. Tudo foi feito às claras, sem feriado bancário, sem confisco, sem congelamento de preços, mas com transparência e muita explicação à sociedade. Os brasileiros puderam entender a engenhosidade da criação de uma “moeda passageira” – a URV – como estágio transitório para o Real se tornar o padrão monetário. Sua implementação, como explica Edmar Bacha, um dos idealizadores do Plano, exigiu muita negociação e diálogo com o Congresso Nacional, como é próprio em uma democracia. E lá estavam nomes como o do senador Mario Covas para fazer a defesa parlamentar do plano.
De fato, a equipe econômica liderada por Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, teve de travar várias batalhas. O Partido dos Trabalhadores fez oposição cerrada ao Real, acusando-o de ser um “estelionato eleitoral”, com o objetivo de eleger Fernando Henrique presidente da República nas eleições de 1994. O PT só mudou de discurso quando “seus economistas migraram do palanque para a mesa de operações do Banco Central”, para usar as palavras de Gustavo Franco, outro membro da equipe do Plano Real.
Revisitar aqueles tempos é possível por meio da leitura do livro 30 anos do Real – Crônicas no calor do momento, uma coletânea de artigos de três membros da equipe montada por Fernando Henrique: Gustavo Franco, Pedro Malan e Edmar Bacha.
FHC não era economista, quando o então presidente Itamar Franco o convidou para ser ministro da Fazenda. Mas teve a sensibilidade de montar um time de primeira linha com economistas, a maioria da PUC do Rio, que há tempos vinham estudando a inflação. Na equipe também despontavam nomes como André Lara Resende e Pérsio Arida.
Visto com os olhos de hoje, parece uma insanidade o fato de sua equipe ter comemorado a inflação de julho de 1994, primeiro mês de vigência do Real, de “apenas” 6,8%, projetando uma inflação no acumulado de 12 meses de 120%. Mas um mês antes a inflação tinha sido de 50%, projetando, no acumulado de um ano, algo da ordem de 13.000%. Tinham mais é que comemorar mesmo. Quando o Real completou um ano de vida a inflação acumulada foi de 33%!
A marcha declinante do espiral da inflação a levaria a ficar em menos de 10% em 1997 e a ser de apenas 1,7% em 1998. A hiperinflação, como fenômeno estrutural da economia brasileira, dava lugar a patamares mais civilizados. Mas não sem sobressaltos. O Real não voava em céu de brigadeiro: a taxa de câmbio fixa em R$ 1,00 por dólar trouxe uma enorme distorção e no plano internacional foram três crises econômicas, com repercussão planetária. A do México em novembro de 1994, a dos tigres asiáticos e da Rússia, em 1998.
Quando o Brasil adotou, em janeiro de 1999, o sistema de câmbio livre como uma das pernas do tripé macroeconômico do qual faziam parte superávit primário e meta da inflação, arautos do pessimismo voltaram a se manifestar. Preconizaram uma inflação de até 70% naquele ano e uma queda do PIB de até 7%. Erraram feio. A inflação de 1999 foi de 9% e o PIB cresceu 1%.
Mas faltava o Real passar pelo teste da alternância do poder.
Havia o receio do governo Lula dar um cavalo de pau na economia, quando o PT chegou ao poder pela primeira vez em 2003. Essa batalha foi vencida. A equipe econômica rendeu-se à realidade, a ponto de o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, afirmar: “Binguém mais questiona se um governo, independente de sua coloração partidária, deve ou não ser fiscalmente responsável, preservar a inflação sob controle ou respeitar contratos”.
O Plano Real foi muito mais do que um programa de estabilização monetária. Foi um projeto de país aberto, moderno e inclusivo, como o definiu Elena Landau, também membro da equipe. Impossível dissociá-lo dos fundamentos macroeconômicos estabelecidos no segundo governo FHC, da lei da Responsabilidade Fiscal, do saneamento do nosso sistema bancário, do programa de privatizações. A estabilidade monetária foi irmã siamesa da estabilidade econômica.
Trinta anos depois de sua implementação, o Brasil tem muito a comemorar. Gustavo Franco define a moeda como um símbolo nacional, tão importante quanto nossa bandeira ou o nosso hino. Nos tempos da hiperinflação não tínhamos esse símbolo.
O Real trouxe enormes ganhos para os brasileiros, especialmente aos mais desprotegidos, cujo poder aquisitivo era corroído pelo processo inflacionário. Com a estabilidade econômica, o governo pôde se planejar a longo prazo, foram criados programas de proteção social, a educação avançou com o Fundef e a saúde melhorou com programas como o dos genéricos.
Um dos maiores legados do Real é um bem de valor imensurável: a cultura antinflacionária disseminada entre os brasileiros. Hoje o que se discute é se o país vai cumprir a meta inflacionária de 3%. Não há tolerância com a inflação. O político conivente com ela será rechaçado nas urnas. Graças a essa cultura, já não vivemos mais no país que, como definia José Serra, então ministro do Planejamento, tinha três problemas: “inflação, inflação e inflação”. Esses dias, felizmente, fazem parte de um passado ao qual o Brasil não quer voltar.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/6/2024.