Qual é o sentido de o ministro da Justiça declarar à imprensa que “brevemente” vai haver a solução do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes?
De que serve essa afirmação?
Quando vi a imagem de Ricardo Lewandowski dizendo essas frases, no Jornal Nacional da segunda-feira, 18/3, fui tomado de uma forte, absoluta indignação. Pensava exatamente nisto: de que serve dizer “Nós sabemos que essa colaboração, que é um meio de obtenção de provas, nos traz elementos importantíssimos que nos levam a crer que brevemente teremos a solução do assassinato da vereadora Marielle Franco”?
De que serve isso? O que isso acrescenta, após seis anos do assassinato da vereadora do PSOL e seu motorista?
Que vergonha, que coisa grotesca esse pronunciamento, pensei – e fiquei imaginando um post no Facebook, no Twitter. Acabei não fazendo o post – mas, diacho, que alegria constatar que minha indignação não era gratuita, sem motivo. O editorial do Estadão e o artigo de Malu Gaspar no Globo, na quinta-feira, 21/3, expressaram de forma brilhante os motivos da minha indignação, da indignação dos brasileiros de bem, com o espetáculo pirotécnico dessa pessoa repugnante que é Ricardo Lewandowski.
Escreveu Malu Gaspar:
“Trata-se de uma realidade complexa, diante da qual a última coisa que se deve fazer é proselitismo político. Daí a reação da viúva de Marielle, Monica Benício (na foto), ao ver Lewandowski convocar as câmeras de TV apenas para dar a notícia de um acordo de delação que ele não negociou, não homologou e, segundo ele mesmo, nem sabe que informações traz. ‘Esse pronunciamento do ministro em nada colabora com a esperança, apenas aumenta as especulações e uma disputa de protagonismo político que não honram as duas pessoas assassinadas’, escreveu Benício, hoje também vereadora pelo PSOL.”
Escreveu o jornal O Estado de S. Paulo:
“Comportamentos como o de Lewandowski, mas não só, evidenciam que objetivos político-partidários sobrepujaram a condução republicana de uma investigação policial, como se a solução do caso Marielle fosse uma encomenda, tal como o próprio crime.”
Aí vão as íntegras do artigo e do editorial. (Sérgio Vaz)
***
Marielle e Lucinha
Por Malu Gaspar, O Globo, 21/3/2024
Nesta semana, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, convocou a imprensa para anunciar que a delação premiada do ex-PM Ronnie Lessa, assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes, foi homologada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Com uma expressão vitoriosa, Lewandowski afirmou que a delação “traz elementos importantíssimos que nos levam a crer que em breve teremos a solução do assassinato”. E mais não disse, nos parcos minutos em que ocupou o microfone.
A notícia gerou uma onda de otimismo com a perspectiva de, finalmente, sabermos quem mandou matar Marielle e por quê. É um alento para os familiares, para os amigos e também para a sociedade brasileira, especialmente considerando o que ocorreu no país depois do crime mais emblemático de nossa História política recente.
Embora não se saiba ainda o que motivou os 13 tiros de submetralhadora disparados contra o carro onde estavam a vereadora e seu motorista, não há dúvida de que o assassinato é produto da contaminação do sistema político e judicial pelo crime organizado. Desde que Marielle morreu, em 2018, as milícias ampliaram seu poder se juntando a facções do tráfico e mergulhando numa disputa territorial por mais territórios contra os grupos inimigos. A guerra produziu vítimas na favela e no asfalto.
Em outubro do ano passado, quatro médicos paulistas foram atacados à bala na orla da Barra da Tijuca, em frente ao hotel de alto padrão onde estavam hospedados para um congresso. Um deles morreu apenas porque se parecia muito com um bandido procurado pelos traficantes. Semanas depois, o Rio parou por causa do ataque à frota de ônibus da cidade em represália contra a morte de um miliciano nas mãos da Polícia Civil.
As conhecidas conexões de Ronnie Lessa com esse submundo levaram muita gente a especular que em sua delação pode estar a chave que poderá começar a desmantelar essa engrenagem criminosa.
“A investigação do caso Marielle e Anderson trouxe um ponto de inflexão na estrutura do crime organizado no Rio de Janeiro”, disse a promotora Simone Sibilio, figura fundamental para o avanço desse trabalho, em entrevista ao Estúdio i, da GloboNews. “Até o caso Marielle, Lessa não tinha nenhuma condenação. Em razão do caso Marielle, ele já foi condenado por organização criminosa, obstrução de Justiça e tráfico internacional”.
A autoridade de Sibilio nesse tema é inquestionável, e não se pode perder de vista o avanço que testemunhamos. Ainda assim, nada nos autoriza a dizer que a solução do caso Marielle imporá uma derrota permanente ao crime organizado e a seus tentáculos. A experiência demonstra que as grandes máfias revidam sempre que acuadas, com mais agressividade ainda se o oponente é fraco ou está capturado.
É o caso do Rio de Janeiro, onde o sistema político acaba de se unir para proteger uma deputada estadual acusada pela PF de colocar seu cargo e a estrutura da Assembleia Legislativa a serviço de uma das maiores milícias do Rio. A PF demonstrou que Lucinha (PSD), chamada de Madrinha pelo chefe da quadrilha, seguia suas ordens, trabalhou para tirar dos cargos os policiais que poderiam atrapalhar os negócios da organização e interferiu politicamente para soltar milicianos presos em flagrante.
Em virtude dessa investigação, a deputada foi afastada em dezembro pelo Tribunal de Justiça do Rio, mas no final de fevereiro retomou o mandato com o aval da própria Alerj e o voto favorável de 52 de seus 70 colegas deputados.
Ontem, enquanto a delação de Ronnie Lessa ainda repercutia, uma operação comandada pelo Ministério Público Estadual prendeu 17 policiais militares que faziam a segurança do bicheiro Rogério Andrade, o mais poderoso do estado, hoje em prisão domiciliar.
Trata-se de uma realidade complexa, diante da qual a última coisa que se deve fazer é proselitismo político. Daí a reação da viúva de Marielle, Monica Benício, ao ver Lewandowski convocar as câmeras de TV apenas para dar a notícia de um acordo de delação que ele não negociou, não homologou e, segundo ele mesmo, nem sabe que informações traz.
“Esse pronunciamento do ministro em nada colabora com a esperança, apenas aumenta as especulações e uma disputa de protagonismo político que não honram as duas pessoas assassinadas”, escreveu Benício, hoje também vereadora pelo PSOL.
Como ela própria definiu, quando um grupo se sente autorizado a usar a violência e a morte como forma de fazer política, é a própria democracia que está em xeque. Ocupar as câmeras de TV para fazer oba-oba em nada ajuda a mudar esse quadro e ainda escancara o tamanho da nossa fragilidade.”
***
O show de Lewandowski
Editorial, O Estado de S. Paulo, 21/3/2024
Na campanha em que se elegeu presidente, Lula da Silva prometeu a solução do caso Marielle Franco. Na verdade, para o chefão petista a investigação era só protocolar, porque ele já declarava, no palanque, que o assassinato da vereadora carioca fora obra da “gente dele”, em referência ao então presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, é antiga e notória a exploração política do crime por parte de Lula, mas agora a coisa toda descambou para um espetáculo vergonhoso, tendo como mestre de cerimônias o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, outrora conhecido por sua discrição.
Anteontem, de supetão, Lewandowski anunciou que faria um pronunciamento no fim daquela tarde sobre o caso Marielle. As atenções do País, é óbvio, voltaram-se para o acontecimento. Afinal, não é todo dia que um ministro de Estado anuncia do nada um pronunciamento, sobretudo a respeito de tema tão sensível para a sociedade brasileira. Decerto não foram poucos os que esperaram que o governo federal fosse anunciar, enfim, quem havia mandado matar a vereadora Marielle Franco e por qual motivo.
Como o País inteiro pôde ver, foi um anticlímax. O ministro da Justiça apequenou-se. Lewandowski se limitou a informar que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), havia homologado o acordo de colaboração premiada firmado entre a PF e o ex-policial militar Ronnie Lessa, agora assassino confesso da vereadora e do motorista dela. Em tempos menos espalhafatosos, uma informação como essa chegaria a público numa entrevista rotineira dada por subordinados do ministro, sem a pompa de um pronunciamento oficial.
No horário marcado, Lewandowski surgiu diante das câmeras, anunciou a homologação do acordo, elogiou o trabalho da PF e disse que “a elucidação do caso está próxima” – gerando mais expectativas na sociedade e, mais grave, nos familiares das vítimas. Em menos de quatro minutos, virou as costas e foi embora. Coberta de razão, a vereadora Monica Benício (PSOL-RJ), viúva de Marielle, afirmou que a fala do ministro “em nada colabora, apenas aumenta as especulações e uma disputa de protagonismo político que não honram as duas pessoas assassinadas”.
Compreende-se a reação de Monica Benício. Após a posse de Lula, sobretudo a partir da transferência das investigações para a PF, subordinada administrativamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o governo federal transformou o caso Marielle num circo. No afã de transmitir ao País a ideia de que o governo Lula da Silva está trabalhando na área da segurança pública, um de seus flancos mais vulneráveis, parece que vale tudo. Em meados de janeiro, convém lembrar, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, disse estar “convicto” de que o caso Marielle estaria resolvido até o fim de março. Para um inquérito que corre sob sigilo, o delegado foi bastante loquaz, outra evidência de que a instrumentalização da morte de Marielle para fins políticos veio para ficar.
Nem se discute aqui se a entrada da PF no caso era necessária e se, a partir disso, as investigações avançaram em relação aos achados da Polícia Civil do Rio. O fato é que o que nasceu como uma ambição política, e não técnico-policial, evoluiu naturalmente para a espetacularização, não raro vulgar e, principalmente, desrespeitosa à memória das vítimas e ao sofrimento de seus familiares. Assim foi quando o ministro da Justiça e Segurança Pública era Flávio Dino, um notório caçador de holofotes, e assim continua sendo na gestão de Lewandowski.
Comportamentos como o de Lewandowski, mas não só, evidenciam que objetivos político-partidários sobrepujaram a condução republicana de uma investigação policial, como se a solução do caso Marielle fosse uma encomenda, tal como o próprio crime. Até o STF parece ter sido contaminado por esse mau direcionamento. O caso chegou ao Supremo faz pouco mais de uma semana. E em apenas cinco dias Moraes homologou um acordo que envolve uma complexa investigação de seis anos.
22/3/2024