A presidente do Partido dos Trabalhadores Gleisi Hoffmann encantou-se com a China em sua visita oficial ao país de Xi Jinping. Ela viajou para participar de um seminário realizado em Pequim do qual o PT participou com uma delegação de nada menos do que 28 integrantes. Gleise liderou o animado grupo, defendeu a “democracia chinesa” e a definiu de “efetiva”
Segundo a presidente dos petistas, “o Ocidente tem de parar de dar lição de democracia”. Ou seja, quem tem de ensinar são os chineses.
Pródiga em elogios ao modelo chinês, arrematou: “O que eu vejo aqui, inclusive na organização do partido e da sociedade, é uma democracia e uma participação nos extratos mais baixos da sociedade aos mais altos no desenvolvimento do país. Quisera tivéssemos isso nos países em que o capitalismo é o coordenador da economia”.
As declarações de Gleisi têm sintonia com a onda antiliberal que varre o mundo. Nisso convergem a direita autoritária e a esquerda que não tem a democracia como valor universal.
A democracia ocidental está sob ataque duplo. Não é a primeira vez. Nos anos 30 do século passado, o fascismo e o stalinismo uniam forças na crítica à “disfuncionalidade” da democracia liberal, apontando o seu ocaso. A História não lhes deu razão, como não dará a Gleisi. Essas ondas se sucedem, mas, ao final, a democracia continua se impondo como um grande valor da humanidade.
É fato inconteste que nos dias atuais a democracia tal qual o ocidente pratica – separação dos poderes, pluripartidarismo, alternância dos poderes, garantias das liberdades públicas e individuais – está sob cerco. Até mesmo nos Estados Unidos. Uma vitória de Donald Trump na disputa presidencial, pode provocar um retrocesso democrático tão ou mais grave quanto o retrocesso dos anos 30, como avalia Eduardo Viola, do Núcleo de Altos Estudos da USP.
Quando elogia a ditadura chinesa, a presidente do PT engrossa esse coro. Há uma linha de coerência em seus elogios ao modelo chinês e a política do governo Lula em relação a governos e regimes totalitários, de “direita” ou de “esquerda”. A defesa da democracia deixou de ser um valor da política externa brasileira, substituída pela posição antiamericana e antiocidental de governos como o de Nicolás Maduro, Xi Jinping, Modi, Vladimir Putin ou da ditadura teocrática do Irã. A ideia da constituição do bloco Sul Global é permeada pela mesma concepção, assim como a ampliação do Brics e a vergonhosa nota do Itamaraty sobre o ataque iraniano a Israel.
O namoro com o bloco antiocidente parte de uma premissa revelada pela presidente do PT, em sua intervenção no seminário. Segundo ela, o mundo “vive uma crise sistêmica” e os Estados Unidos estão no epicentro dessa crise.
Em suas palavras surge, com todas as letras, a crise terminal do capitalismo para a qual a presidente do PT aponta duas alternativas: socialismo ou barbárie. Essa premonição não é nova, foi feita há um século por Rosa de Luxemburgo. Mas não foi confirmada pela história. O capitalismo, sobreviveu a todas as suas crises, bem como a democracia foi capaz de se renovar e se ampliar.
O Estado de Bem Estar Social gerado no pós segunda guerra mundial foi produto dessa evolução, na qual a economia de mercado, bem estar e democracia se complementaram.
Desde Lenin, a crise final do capitalismo foi anunciada diversas vezes, inclusive na grande depressão de 1929. Muitos enxergaram ali o colapso da economia liberal e de mercado.
Mas o que se viu ao longo da história foi o fim do socialismo real no Leste Europeu e a adesão dos países deste bloco à economia de mercado e capitalista. Inclusive da Rússia, ex Pátria-mãe do socialismo.
Ao contrário do que pensa a presidente do Partido dos Trabalhadores, a China também se rendeu ao capitalismo, ainda que de Estado e associado ao capital privado. Na sociedade chinesa pós modernização implementada por Deng Xiaoping, emergiu uma burguesia e uma economia que combina livre concorrência com regulação.
Gleise e o PT convenientemente esquecem que as condições de trabalho na China não fazem inveja aos trabalhadores do Ocidente.
No país de Xi Jinping, os sindicatos são meras correias de transmissão do Estado. Não há direito de greve, os salários são baixíssimos, a jornada de trabalho é extenuante, férias são limitadas e aposentadorias são restritas. Ou seja, há superexploração do trabalho. Quem diz isso é um companheiro de Gleisi, Marcus Sokol, membro da Executiva Nacional do PT, no seu livro “Viagem à China: um relato comentado”.
O contraste com a situação do trabalhador ocidental ficou muito evidente no premiado documentário “Indústria Americana”, produzido por Barack Obama, quando a empresa Fuyao comprou uma antiga indústria da GM, no Estado de Ohio. Os empresários chineses, novos proprietários da fábrica, ficaram chocados com o papel dos sindicatos americanos na defesa dos trabalhadores, bem como surpreenderam-se com benefícios e condições de trabalho na fábrica americana. Nada disso existia em uma unidade do mesmo grupo na China, e eles não queriam que os trabalhadores do polo chinês tomasse conhecimento dos benefícios trabalhistas existentes nos Estados Unidos.
Chamar o regime chinês de “democracia efetiva” é um eufemismo para esconder seu caráter ditatorial. Na China não há imprensa livre, liberdade de manifestação e de expressão, alternância do poder, eleições livres e secretas e direitos de minorias. Os uigures, povo asiático que habita a região de Xinjiang no noroeste da China, vivem confinados em campos de reeducação submetidos a atrocidades de todo o tipo: torturas, estupros sistemáticos de mulheres e submetidos a trabalho forçado. O déspota oriental dos tempos atuais não é um senhor de guerra ou um mandarim. É um sujeito coletivo, a ditadura do partido único.
O Brasil não deveria tomar partido na disputa entre os Estados Unidos e a China mas sim manter boas relações, estratégicas e pragmáticas, com os dois países. Os chineses são importantes para nossa economia e fundamentais para nossas exportações por serem nosso principal parceiro comercial. Mas daí tecer elegias ao regime há uma enorme distância.
O pragmatismo responsável nas nossas relações externas não pode estar em conflito com a nossa vocação e a nossa cultura, indissoluvelmente vinculada ao mundo ocidental. Nelas, a defesa da democracia é um divisor de águas. É com ela que nos identificamos.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/4/2024.