O fiasco da camaradagem de Lula com Maduro

O Acordo de Barbados, assinado em outubro do ano passado, foi saudado entusiasticamente por Lula. No entendimento do governo brasileiro, o acordo assegurava uma eleição livre na Venezuela, que seria reconhecida internacionalmente e teria a participação da oposição. Seria também a confirmação do acerto de sua estratégia de apaziguamento com Maduro. Em vez de adotar uma postura dura diante de constantes violações dos direitos humanos, o presidente apostou por uma política de acomodação com o ditador venezuelano.

O ideólogo e executor da estratégia foi o assessor especial da presidência para Assuntos Internacionais, Celso Amorim. Na sua visão, o isolamento da Venezuela só favoreceu ao endurecimento da ditadura, levando a sucessivas ondas de ataques às liberdades e repressão aos oposicionistas. Amorim defendia o estreitamento das relações com Maduro como melhor caminho para levar, a longo prazo, a uma abertura do regime.

O governo brasileiro, diga-se de passagem, ia na direção contrária da postura do Chile de Gabriel Boric, da Argentina no governo Alberto Fernandes, e até mesmo do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, todos eles críticos das constantes violações praticadas por Maduro. O Brasil preferia a política de “pé do ouvido”, em vez de adotar uma postura unitária com os países vizinhos de condenar o regime chavista.

Havia um misto de ingenuidade e de afinidade ideológica por trás da posição brasileira. Ingenuidade por acreditar que Maduro realizaria uma eleição livre, na qual pudesse até ser derrotado. E afinidade pela mesma visão terceiro-mundista, elo das “relações fraternas” entre Lula e o ditador venezuelano. O antiamericanismo e o antiocidentalismo tem sido um dos traços da política externa neste terceiro mandato de Lula. Daí o apoio a ditadores e autocratas pelo mundo afora.

Maduro violou o direito internacional quando  defendeu a anexação de Essequiba, região que representa 70% do território do país vizinho. Ao invés de receber repreensão dura e inequívoca do governo brasileiro diante da agressão política e à possível agressão militar, foi tratado com espantosa camaradagem.

Lula também estendeu o tapete vermelho quando Maduro visitou o Brasil em maio do ano passado. Mantendo uma linha de coerência com posições adotadas nos seus dois mandatos anteriores, o presidente estimulou o ditador venezuelano a construir sua narrativa para provar que seu país era uma democracia.

Não custa lembrar. Nos tempos de Hugo Chávez, Lula dizia que a Venezuela tinha overdose de democracia porque realizava eleições e plebiscitos em demasia. Desde os primórdios do chavismo o regime fez execuções extrajudiciais de opositores e instituiu a tortura como uma prática comum dos órgãos de repressão.

Estava na cara, o Acordo de Barbados era coisa para inglês ver. Mesmo depois de sua assinatura, continuaram as prisões de oposicionistas e ativistas dos direitos humanos venezuelanos, entre os quais a prisão da ativista Rocio San Miguel e seus familiares. Em fevereiro deste ano, uma nova onda de prisões de oposicionistas varreu a Venezuela e funcionários do escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos foram expulsos do país. Elas aconteceram porque os relatórios da ONU apontavam constantes violações dos direitos humanos na Venezuela.

Os indícios de uma eleição com carta marcada eram visíveis a olhos nus. Maria Corina Machado, principal líder da Plataforma Unitária – bloco oposicionista formado por movimentos da sociedade civil, sindicatos, partidos, militares reformados e parlamentares – foi impedida de se candidatar, por decisão da Justiça Eleitoral. Registre-se, inteiramente controlada pelo governo Maduro. Como sempre, os principais líderes oposicionistas estão impedidos de participar da eleição.

A ditadura venezuelana rasgou a fantasia da pantomima eleitoral logo em seguida, impedindo o registro da candidatura tampão de Corina Yoris, filósofa e professora universitária de 80 anos de idade, indicada pela Plataforma Unitária para substituir Corina Machado. Nem mesmo o Judiciário fantoche tinha inabilitado Yoris, pois ela nunca foi condenada a nada. Foi impedida por um único motivo: sua candidatura unia a oposição, sendo uma ameaça à “reeleição” de Maduro.

Foi demais até para a política adocicada do governo brasileiro. O Itamaraty soltou uma nota chocha, na qual só faltou pedir desculpas a Maduro por ter manifestado publicamente a preocupação do governo brasileiro por não ter sido permitido o registro da candidata oposicionista. Em seguida Lula se disse surpreso e qualificou o episódio como grave, por não ter “explicação jurídica e política”. O presidente e Celso Amorim tiveram de admitir que a exclusão da candidata oposicionista violava o Acordo de Barbados.

A reação do presidente e do Itamaraty representou a própria confissão do fiasco da política de apaziguamento com Maduro. O Acordo de Barbados está para Lula assim como o Tratado de Munique esteve para Neville Chamberlain. O então primeiro-ministro britânico acreditava que tinha assegurado a paz duradoura e evitado a Segunda-Guerra após ter assinado o tratado com Hitler. Lula acreditou que o Acordo de Barbados assegurava eleições livres e democráticas na Venezuela. Doce ilusão.

Para a imagem de Lula, o fracasso de sua política em relação à Venezuela é péssimo. Sonha em ser reconhecido como um líder mundial, merecedor do Prêmio Nobel da Paz, mas demonstra não ter liderança sequer entre os países vizinhos.

Mesmo assim, não se deve tomar suas últimas declarações sobre a Venezuela como indicativos de um abandono da política de contemporização com Maduro. A tendência é de manter a política de acomodação com o ditador, na crença de que por esse caminho minimizará a escalada autoritária no país vizinho. O grande risco é findar validando uma farsa eleitoral e, assim, contribuir para a perpetuação da ditadura e do desastre que se abateu sobre os venezuelanos.

O Brasil deveria somar-se à pressão internacional, único instrumento eficaz, capaz de impor freios a Nicolas Maduro. Nosso país não pode se prestar ao papel de dar sobrevida a uma ditadura responsável pelo êxodo de oito milhões de venezuelanos e por ter jogado 80% da população na linha da pobreza. Tampouco pode legitimar a pantomima eleitoral em curso, tornando-se cúmplice de um processo espúrio no qual o direito de um povo escolher livremente seus governantes é suprimido.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em  4/4/2024. 

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