Quando o ditador venezuelano Nicolás Maduro visitou o Brasil em maio de 2023, Lula recomendou a ele construir uma narrativa para mostrar que a Venezuela é uma democracia. Foi um espanto para todos os que acompanham e conhecem o regime do país vizinho.
O fato é que o tirano seguiu o conselho do presidente brasileiro. E agora acaba de construir a versão de que foi vitorioso na disputa presidencial do último domingo, em uma eleição fraudada no começo, meio e fim.
Uma narrativa tosca, pois sobram provas e evidências da pantomima eleitoral montada pela ditadura venezuelana. Mesmo assim, Celso Amorim, os olhos cegos e os ouvidos surdos de Lula, diz que “o governo brasileiro não vai endossar nenhuma narrativa de eventuais fraudes” nas eleições do país vizinho. Um escárnio.
Posição bem diferente tiveram outros presidentes de esquerda na América Latina, como Gabriel Boric, do Chile, Gustavo Petros, da Colômbia e Bernardo Arévalo, da Guatemala.
Apenas as ditaduras de Cuba e Nicarágua, além da Bolívia, e os regimes autocráticos da China e da Rússia reconheceram como legítima a farsa montada por Maduro. O Partido dos Trabalhadores, do qual Lula é a principal liderança, foi na mesma toada ao afirmar em nota oficial que a eleição foi “democrática e soberana”. O braço esquerdo de Lula, no qual se inclui o MST, se apressou em saudar a “vitória” de Maduro, reconhecendo-a como legítima e democrática.
Os laços entre a esquerda brasileira e a ditadura venezuelana vêm de longe e estão pactuados no Foro de São Paulo, como parte da causa “antiimperialista”. O antiamericanismo e antiocidentalismo são vieses presentes nos governos Lula, inclusive no atual mandato. A visão geopolítica de Lula e Amorim os leva a ter uma política diplomática pautada por afinidades ideológicas pessoais e não pelos interesses do Brasil.
Ao presidente brasileiro não é dado o benefício da ingenuidade na sucessão de erros cometidos nas relações com a Venezuela. A política diplomática de seu governo baseou-se na estratégia do silêncio, acreditando ser mais eficaz sussurrar suas queixas nos ouvidos do ditador. Pensava, assim, influenciar positivamente o regime venezuelano a realizar uma eleição limpa e transparente, com resultado aceito por todas as partes.
O Acordo de Barbados assinado em 17 de outubro de 2023 pela oposição e o governo venezuelano e avalizados pelo Brasil, Estados Unidos e Noruega, parecia ser a confirmação do acerto da estratégia de Lula. Ao sentar à mesa de negociação, Maduro se comprometeu a realizar eleições limpas, acompanhada por observadores internacionais independentes e com resultados incontestáveis. Os Estados Unidos deram seu OK ao acordo, retirando as retaliações econômicas à Venezuela. O governo brasileiro exultou quando, em consequência dos acordos, o regime venezuelano anunciou a libertação de presos políticos.
Lula ficou na condição de principal avalista dos acordos, prestes a colher o maior sucesso de sua política externa. Se o pactuado tivesse sido cumprido, a Venezuela transitaria da ditadura para a democracia, de forma pacífica, semelhante ao que aconteceu no Brasil em 1985. Em grande medida, os louros iriam para o presidente brasileiro. A recíproca também é verdadeira. O fracasso dos acordos caem também nas costas de Lula, em função da sua postura de cumplicidade com Maduro.
Em ditaduras, porém, não vale o que está escrito. Maduro rasgou o Acordo de Barbados ao impedir a candidatura de Maria Corina Machado, vencedora das primárias da oposição, com 93% dos votos. Enquanto os Estados Unidos restabeleceram as retaliações econômicas à Venezuela, Lula nada protestou.
A oposição não caiu na armadilha de Maduro de tentar forçá-la a trilhar o caminho do abstencionismo, como fez em eleições passadas. Com sua principal liderança impedida de disputar por uma Justiça Eleitoral atrelada ao governo, a oposição lançou outra candidata, Corina Yoris. Mas o regime ditatorial manobrou e a nova candidata também não conseguiu se inscrever.
De novo, o governo Lula preferiu adotar a política de não protestar publicamente contra mais uma violação ao que havia sido acordado. Liderada por Maria Corina, a oposição se uniu em torno de um terceiro nome, por meio da candidatura do diplomata Edmundo González e com a mensagem de conciliação e pacificação da Venezuela, um país do qual 20% de sua população – cerca de 7,5 milhões de pessoas – se exilaram e fazem parte da grande diáspora venezuelana. Esses venezuelanos tiveram vetados seu direito de votar na eleição de seu país.
Apesar de enfrentar uma disputa desigual e com violações praticadas pelo regime, a candidatura da oposição empolgou e tinha chances reais de vitória, conforme indicavam todas as pesquisas independentes, dando-lhe uma vantagem de cerca de 30 pontos. Nessas condições, era pedra cantada de que o ditador Maduro armaria uma farsa para fraudar as eleições e, assim, continuar no poder.
Objetivamente, o governo brasileiro assumiu a postura de avalista de Maduro, ao silenciar diante de diversas violações do processo eleitoral. Esse papel de sócio de um simulacro eleitoral ficou reforçado com a presença de Amorim em Caracas, “para buscar a verdade”. O governo Lula colocou o Brasil em uma situação incômoda e desconfortável, prisioneiro das teias que teceu. Lula não teve a prudência de um Gustavo Petros. Na véspera da eleição, o presidente colombiano suspendeu a viagem de seu ministro do Exterior à Venezuela, para não coonestar a farsa que estava sendo montada.
A diferença de postura entre Petros e Lula explicita a existência de duas esquerdas na América Latina. Petros expressa uma esquerda que observa a democracia como um valor universal e inegociável. Já a postura de Lula, e em especial a nota do seu partido, demonstram que eles, o presidente e seu partido, entendem a democracia como um expediente tático de valor relativo. Aliás, para defender a Venezuela de Maduro, Lula já disse que a democracia é relativa.
A visão distorcida leva à negação de um dos pilares da doutrina diplomática brasileira: a defesa da democracia e a observância dos direitos humanos. Essa distorção, a nota oficial do PT e a declaração de Celso Amorim de “não endossar narrativas de fraude” acendem desconfianças quanto ao governo Lula. A impressão que fica é que se arma uma operação para apoiar, sem disfarces, a ilegitimidade do governo Maduro. Aos olhos da oposição, Lula perde interlocução, e perde protagonismo para países da região por ter adotado uma postura permissiva com a ditadura venezuelana.
Mais que isso, ao afirmar nesta terça-feira que “não vê nada de grave ou assustador no processo eleitoral venezuelano”, Lula perde credibilidade para liderar o continente com vistas a uma saída para a crise da Venezuela.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 31/7/2024.