Governo puro-sangue

Na retórica, o governo Lula se define como de uma frente democrática, uma vez que na composição de seus ministérios participam partidos de centro-direita. Na prática, a teoria é outra e o terceiro mandato de Lula é mais petista do que o Lula I e o Lula II. Não só pela ocupação do Partido dos Trabalhadores nos ministérios mais estratégicos, como também nas políticas em diversas áreas.

Personalidades como o vice-presidente Geraldo Alckmin e a ex-presidenciável Simone Tebet, que, se tivessem protagonismo, poderiam de fato dar ao governo um caráter de Frente Ampla, desempenham papel quase ornamental, sem maior protagonismo.

Esse é apenas o pano de fundo para as sucessivas derrotas do governo no Congresso, como aconteceu na semana passada. Essas derrotas são como queda de avião, não há uma causa única, decorrem de vários fatores. A começar pela mudança ocorrida no Congresso, que ganhou poder e independência com as emendas impositivas do Orçamento. Os parlamentares já não precisam ficar de pires na mão, mendigando nos corredores dos ministério a liberação de verbas para seus redutos eleitorais.

O país vive um semipresidencialismo distorcido. Os parlamentares ficam com o bônus e não tem o ônus que é próprio em países com esse tipo de regime, onde o presidente tem o poder de convocar uma nova eleição do Parlamento, quando há um impasse entre o Executivo e o Legislativo. Mas quem disse que a esquerda abre mão do presidencialismo?

O governo aplaina o terreno para colher derrotas quando envereda pelas trilhas tortuosas do nacional-desenvolvimentismo. Exemplo mais cristalino é o intervencionismo na Petrobrás. Essa é uma agenda de setores da esquerda e não de uma frente democrática. Assim como a atual política externa, contaminada por um viés antiamericano e antiocidental, descompensada em favor de governos autoritários. Tampouco a pauta identitária é ponto de coesão de uma frente democrática.

A frente ampla formada no segundo turno da vitória de Lula se deu pelos riscos à democracia que poderia representar uma vitória de Bolsonaro. Mas não foi coesionada por um programa comum.

O Lula III é um governo puro-sangue. Emblemático disso é a composição de sua articulação política. O líder do governo na Câmara, José Guimarães, é do PT, o líder no Senado, Jacques Wagner, é do PT e seu líder no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, está à espera de uma brecha na agenda de Lula para assinar sua ficha de ingresso no Partido dos Trabalhadores.

Bom, o ministro responsável pela articulação política, Alexandre Padilha, também é do PT. É uma equipe bem mais petista do que a do segundo mandato de Lula. Em 2007, o líder do governo na Câmara de Deputados era José Múcio, então do PTB, o líder no Senado era Romero Jucá, PMDB, e a líder no Senado era Roseana Sarney, também do PMDB. O ministro das Relações Institucionais também era do PTB, Walfrido Mares Guia, posteriormente substituído por José Múcio.

O primeiro passo para solucionar um problema é reconhecer sua existência. Sucessivamente Lula deu declarações de que não via nenhum problema na sua articulação política. Diante da surra sofrida no Congresso na última terça-feira, o presidente decidiu retomar as reuniões semanais com a sua equipe política.

Não há aí uma mudança de mentalidade e não se dá protagonismo aos partidos parceiros. Ao contrário, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, cobra, publicamente, responsabilidade dos ministros de outros partidos que não entregaram votos na última terça-feira. Lula também foi na mesma toada, na primeira reunião da sua articulação após as derrotas da semana passada.

Gleisi e Lula fariam melhor se seguissem o conselho de seu companheiro de partido, Ricardo Berzoini, ex-ministro das Relações Institucionais do governo Dilma e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores: “Como não tem base fixa (o governo Lula no Congresso) precisa ter uma estratégia para ver quais assuntos vai priorizar. Temas de comportamento e identitários serão cada vez mais difíceis de votar (…) meus companheiros do PT, do PC do B ou do PSOL e que acham que o governo tem capacidade de colocar uma pauta de esquerda tem que se convencer que, para isso, a próxima eleição tem de eleger um Parlamento de esquerda”.

Esse é o ponto. Lula comete o erro de um general que ignora a correlação de forças e não sabe escolher suas batalhas. Em vez disso, joga na improvisação, esquecendo-se de que o mesmo Congresso que tem lhe imposto derrotas sucessivas lhe deu condições de governabilidade ainda na transição,  concedendo os meios orçamentários para tal. O mesmo Congresso xingado de reacionário também aprovou o arcabouço fiscal e fez avançar a reforma tributária.

A equação é simples: quando o governo adota uma agenda social liberal logra vitórias.  O inverso também é verdadeiro. Toda vez em que cede à pressão de seu braço esquerdo e envereda pela agenda nacional-desenvolvimentista ou de costumes, amarga derrotas.

O governo tem de fazer política com o Congresso que está aí, não existe outro. Ele é um espelho da nossa sociedade. Reflete uma média dos valores dos brasileiros, hoje majoritariamente conservador nos costumes e liberal na economia. Eles são favoráveis ao empreendedorismo, querem prosperar na vida e esperam do Estado serviços de qualidade em áreas fundamentais como educação, saúde, segurança e transportes.

Lula não atenderá a essas expectativas com um governo puro-sangue e estreito.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 5/6/2024.

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