Debaixo d’água

Nem rio, nem lagoa. O Guaíba é um estuário pelo qual escoam as águas de várias bacias hidrográficas — especialmente as do norte e do centro do Rio Grande do Sul — e através dele ganham a Lagoa dos Patos, um oceano de água doce que desemboca no Atlântico, no extremo sul do Estado.   

Quando chove acima do esperado nessas bacias, o Guaíba enche. E se os ventos baterem do sul na direção de Porto Alegre, o Guaíba fica ainda mais cheio, pelo represamento natural das águas. 

No ano passado choveu muito, mas não tanto como agora, e o Guaíba avançou sobre as regiões mais baixas da cidade. A culpa maior foi do vento sul, por aqui também chamado Minuano, vento frio e gelado que vem da pampa uruguaia e argentina. 

Este ano não teve vento sul nos dias de cheia. A culpa foi só da chuva, que ultrapassou todos os limites. Hoje, 4 de maio de 2024, o Guaíba sobrepassou os 4,76 metros da cheia de 1941 — até ontem a maior da história. As 5h da manhã de hoje, estava em 4,89 metros. (A foto é da sexta-feira, 3/5.)

A diferença entre os dois eventos é que em 41 não tinha o dique da Avenida Mauá, só construído em 1970, após cheias menores. Antes dos diques, o centro de Porto Alegre ficava coberto de água quando ela subia acima da beira do cais. 

Mas a culpa de subir hoje acima desses níveis e, apesar dos diques, vazar para as ruas do Centro não é só das chuvas e dos ventos. 

Em Porto Alegre faz um calor dos diabos no verão. A equação é simples. A vedação dos diques é de borracha. Eles são formados por comportas de aço que correm sobre trilhos e para vedar os espaços, tanto na vertical, entre as chapas de aço, como na horizontal, junto aos trilhos, há barras de borracha para fechar as frestas e impedir vazamentos. 

A solução é do tipo quebra-galho, mais ou menos como essas que vemos lojas e botecos fazerem com tábuas em frente às suas portas, para impedir que a enxurrada leve tudo e mais um pouco. 

Com o calorão do verão, as borrachas ressecam e não vedam mais como antes. O sistema exige manutenção frequente e é de responsabilidade da prefeitura e seu Departamento Municipal de Águas e Esgoto, o DMAE, que querem privatizar há anos. 

A água vaza pelas comportas. Então, empilham sacos e mais sacos de areia em frente a elas, para mais uma vez quebrar o galho. E aí cabem diversas perguntas: estão fazendo a manutenção correta e com a frequência adequada?; estão sucateando o Departamento para desvalorizar o órgão e vender mais barato?; estão fazendo isso para manipular a opinião pública e convertê-la a favor da privatização?; o sistema tem mais de 50 anos e já não era hora de fazer uma coisa mais moderna para proteger o Centro da cidade? 

Enquanto as respostas não vêm, o jeito é rezar para São Pedro dar uma trégua, o que acabou acontecendo hoje, quando voltou a chover somente às 7 da noite. Fraco, dessa vez. Mas ao longo do dia o Guaíba subiu mais um pouco, para 5 metros, dois acima da cota de inundação. 

O Guaíba proporciona pores-de-sol espetaculares aos privilegiados porto-alegrenses que vivem às suas margens. Os tons vermelho alaranjados do crepúsculo são de tirar o fôlego. Mas nas chuvas bíblicas  que viraram moda no mundo moderno, o Guaíba mostra o outro lado da moeda, tornando-se capaz de virar um pesadelo. 

A inundação obriga ao corte de luz do Centro Histórico e arredores, para evitar eletrocussões, explosões e incêndios, e ao corte do fornecimento de água em quase toda a cidade, devido ao alagamento das estações de bombeamento do DMAE. 

Não poderiam ser estações elevadas ou suspensas? As comportas não poderiam ser embutidas no chão, em vez de rolarem sobre rodinhas? Chuvas torrenciais fora de época são o novo normal neste mundo de superaquecimento global. É preciso ter novas idéias, produzir novas soluções. É preciso dar asas à imaginação. 

Para este domingo e a próxima semana estão previstas novas chuvaradas. E enquanto as chuvas sobram, falta água nas torneiras e luz nas praças, postes e prédios de apartamentos do Centro Histórico. 

Porto Alegre é tudo menos alegre nestes tempos de cheia e escuridão. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado, porto-alegrense e debaixo d’água. 

4/5/2024

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