Coisas da Vida

O marido a deixou, sem nada. Sem dinheiro ou pensão do INSS. Foi-se, assim, sem aviso. De uma hora para outra. Ao mesmo tempo em que sofria a ida da filha mais velha para os Braços do Senhor. E, depois do marido, partia também a filha mais nova por carregar nas entranhas um câncer irrecuperável. Tudo acabou. Perdeu o ombro amigo, o colo do companheiro onde se lamentava ou chorava alegrias e os carinhos nas filhas desde sempre.

Quase passado o desespero, abriu as portas do único bem, um carro de 10 anos. Carregou-o com o que coube, abandonou a residência temporária. Foi curar a ressaca emocional à beira mar.

No começo da vida com o marido, tudo era motivo para risos e comemorações. A cada fim de contrato de trabalho dele, dias de férias eram garantidos pela legislação. Quando quase acabava o dinheiro, ele conseguia um novo contrato e obrigava mudanças. Física, emocional e de hábitos.

Foi durante essas aventuras que nasceram as meninas, com intervalo de quatro anos. As pequenas conheceram estradas, barragens, conjuntos residenciais de acampamento, estudaram com professores de sotaques diversos, formaram-se, viveram e morreram em meio a aventuras. Muitas desagradáveis, a maioria divertida. Conformada, colocou Paçoca no banco da frente e partiu em direção à praia para ver o mar, o mesmo mar que conhecia desde bebê.

A nova casa na praia era mínima. Quatro cômodos: quarto, sala, cozinha e banheiro. Vivia ali com o que ganhava ao vender pedaços de bolo, cuja receita aprendera com a mulher de um barrageiro na obra de Itaparica. Às vezes recebia encomendas de doces de festa e principalmente do tal bolo baiano. A seu lado a amiguinha de sempre, a atenta e amorosa Paçoca, basset caramelo que também fazia vezes de atenta ouvinte de suas saudades.

Andava pela areia da praia a oferecer à turistada barulhenta os bolos de sua cesta. Ao final do dia contabilizava os ganhos após o investimento. Na temporada, faturava bem e guardava um pouco. Fora da temporada de verão ou entre os feriados prolongados, pescava. Aprendera com os pescadores que se instalavam na maré baixa em cadeirões de alumínio alguns dos macetes da pesca de praia. Abastecer o molinete com a linha adequada, tamanho dos anzóis, chumbada, nós, tamanho da vara (usava as de bambu, mais em conta), iscas e finalmente a técnica do arremesso distante. Dava sorte com peixes pouco acima da média e em casa os limpava e colocava no congelador da geladeira de segunda mão, comprada com os lucros do bolo baiano.

As coisas iam relativamente bem, até que um dia acordou com a febre. Colocou a mão no pescoço e se assustou. A febre era alta, perto dos 40º. Com dificuldade procurou no banheiro a caixinha de remédios. Achou um Melhoral. Tomou, deitou, rezou para que o efeito fosse rápido, dormiu. Paçoca velou o sono doente até acordar. Ganhou um carinho na cabeça, ouviu sobre fraqueza, da pouca comida na despensa, enfim, sobre a desgraceira desabada justamente na hora que precisava estar mais forte para encarar a temporada de verão.

Ao longe, ouvia a alegria de alguns a comemorar alguma coisa. A febre voltara. Virou para o canto da parede e dormiu, não sem antes rezar um Pai Nosso com fervor e lágrimas nos olhos.

Paçoca saiu, demorou-se algum tempo e, não se sabe como, chega à casa carregando um bife de quase 200 gramas. Largou-o nos pés da cama e começou a latir bem alto. Ela acordou reclamando do barulho, mas Paçoca pegou o bife, colocou as patinhas dianteiras na beirada do colchão e mostrou o que trouxera.

Paçoca no colo, ela pegou o bife, foi para a cozinha, lavou a carne, acendeu a lenha do fogão, temperou e colocou na frigideira. Em pouco tempo as duas mastigavam com prazer o naco que a cachorrinha trouxera. Essa confusão toda durou três longos dias, após ter ido ao pronto socorro e ser medicada. Naquele dia, de volta a casa, recebeu o aviso de que deveria deixar o imóvel, por ter atrasado o aluguel em dois meses. Deu de ombros. Voltou a juntar tudo o que podia, organizou a mudança, Paçoca foi para seu lugar, no banco da frente, e tomaram o rumo de São Paulo.

Do pouco que guardara para emergências pagou dois meses de aluguel de uma casinha ainda menor do que a da praia. Quarto, cozinha e banheiro. Mas tinha garage onde cabia apenas o Fiat R3 vermelho. Voltou a oferecer seu bolo baiano, desta vez em longas caminhadas pelo bairro, perto de ser quase classe média, sempre acompanhada da fiel Paçoca. A féria era boa e garantia alimentação diária, o aluguel, e um pouco de combustível, além, é claro, dos ingredientes para o bolo.

Viveu bem por cerca de um ano. Nesse período, Paçoca virou estrelinha causando-lhe comoção tão grande que em pouco tempo transformou-se em profunda depressão. Mas a madrasta da má fortuna ainda deu sua última piscada em seu destino. Ao acordar, abriu a janela da frente e deu pela falta do Vermelhinho.

Chorou, lamentou-se reclamou da sorte e a depressão agravou-se. Mulheres habituadas a comprar o bolo baiano se revezavam à sua porta na tentativa de encomendas. Não houve resposta.

Nunca mais.

(*) José Guido Fré é jornalista. 

Um comentário para “Coisas da Vida”

  1. Guido conto bom, mas não poderia ter pelo menos um alento para a pobre mulher? Não digo encontrar o príncipe encantado, mas poderia ganhar na loto, receber um investimento para aumentar a sua produção….mas até a Paçoca morreu. Dnif

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