Por absoluto acaso, ouvi hoje George Harrison cantando “Every Grain of Sand”. Jamais soube que ele havia gravado essa canção. Tem toda lógica, já que ele e Bob Dylan ficaram de fato muito amigos e trabalharam juntos várias vezes a partir do Concert for Bangladesh, a monumental reunião de grandes nomes organizada por George no Madison Square Garden no final de 1971, com renda revertida para ajudar a população faminta do país espremido pela Índia por quase todos os lados.
George e Dylan têm pouquíssimas canções em parceria com outros compositores. Na verdade, quase nenhuma. São, os dois, autores de letra e música em praticamente todas as suas canções. Foi portanto uma surpresa para todos os fãs que os dois tivessem assinado juntos “I’d Have You Anytime”, a canção que abriu o álbum triplo All Things Must Pass, que George lançou naquele mesmo ano de 1971, o primeiro após a separação dos Beatles.
George e Dylan voltariam a se reunir no gostoso, maravilhoso supergrupo Travelling Wilburys, juntamente com Roy Orbinson, Tom Petty e Jeff Lynne. Os Travelling Wilburys gravaram apenas dois álbuns, em 1988 e 1991 – mas, pô, meu, que álbuns! E a absoluta delícia é que aquele bando de monstros sagrados já meio velhinhos, já sem precisar provar coisa alguma, parece ter se divertido como se fossem adolescentes ensaiando numa garagem.
Tudo, nos Travelling Wilburys, é o oposto do que em geral é a arte tanto de Dylan quanto de George. Quase dá para contar nos dedos as canções de Dylan que são alegrinhas, despreocupadas. O bicho é sério, quase ou pra lá de sisudo na imensa maior parte da sua vastíssima obra. E quase o mesmo pode se dizer de George.
A melodia de “Every Grain of Sand” é cadenciada, lenta. É um cântico religioso – mas não um daquelas canções animadas, ritmadas, cheias de aleluias, que a gente costuma associar a cerimônias em igrejas batistas dos negros do Sul do Estados Unidos. Nada também a ver com “My Sweet Lord”, o hino a Buda que George compôs assim que se livrou das amarras de Lennon e McCartney. Não, nada disso. Muitíssimo ao contrário. Não é uma saudação às belezas, às maravilhas da vida. É um convite para se pensar, para meditar, para refletir sobre Deus, sobre a onipresença de Deus.
Não é alegre como “My Sweet Lord”, mas tem a mesma carga de religiosidade – e por isso, mais ainda do que pela proximidade entre George e Dylan, era mesmo uma coisa absolutamente lógica que o ex-Beatle tivesse gravado a música.
Quando ouvi a gravação pela segunda vez, o que me ocorreu foi isso: essa é uma canção que George gostaria de ter assinado – como Milton Nascimento confessou em “Certas Canções” que morria de inveja de Paul McCartney por ele ter composto “Ebony and Ivory”. “Como não fui eu que fiz?”
“Every Grain of Sand” parece com George Harrison, tem gosto de George Harrison.
***
Não sei muito bem o que este texto quer dizer.
Me deu uma vontade louca de escrever sobre “Every Grain of Sand”, o fato de que George gravou a música e eu jamais em tempo algum soube disso, até que hoje, de repente, sem que eu fizesse busca alguma, a gravação apareceu no YouTube no meu celular.
Quis escrever um suelto, para falar, bem sueltamente, dessa grande verdade que a Mary repete sempre: a gente não sabe de nada, a gente não sabe de coisa nenhuma. Diacho, tem mais de 60 anos que eu fui um garoto que amava os Beatles e Dylan – e então como é possível que não soubesse dessa gravação?
Quis fazer um suelto – mas o texto começou bem preso, com informações, e não com emoções. Para que um texto com informações que todo mundo já conhece?
Será que todo mundo conhece?
Sei lá. Só sei que nada sei, na versão filosófica grega. A gente não sabe de coisa nenhuma, na versão marystica.
***
Talvez se eu estivesse mais suelto pudesse contar aqui que, quando Dylan entrou na trip cristã, eu fiquei bastante puto. Eu, não – melhor seria dizer aquele sujeito que eu já fui em uma outra encadernação. (Jornalista não reencarna – reencaderna.) Ali por 1979, 1980, o Sérgio Vaz que chegava aos 30 anos era um chato danado de um comunista linha idiotice ginasiana, e ver meu guru, meu ídolo da rebeldia política virar católico fervoroso me deixou triste, desencantado da vida, como diria o mestre Paulo Vanzolini.
Bem, em minha defesa, eu poderia dizer que não estava sozinho. Joan Baez fez uma canção – que mais tarde seguramente ela deve ter visto que era idiota – que chamava Dylan de volta às marchas da primeira metade dos anos 60. “For Bobby” era o título, e a canção estava no belíssimo disco dela de 1972, Come From the Shadows, que ouvi até quase furar no meu primeiro som de gente grande com algum dinheiro, um toca-disco BSR e um amplificador Lab 40 da Gradiente.
Caetano também escreveu alguma coisa tipo “não dou a mínima importância pra trip cristã de Dylan Zimmerman”.
Acho que éramos todos jovens, naqueles anos 70 – não só eu, mas também alguns dos meus ídolos…
Felizmente a juventude é uma doença que o tempo cura. Anos depois, Joan Baez escreveu uma canção em que dizia que os anos 60 tinham acabado, e então, por favor, deixem o cara na dele..,
***
Não me lembro quanto tempo levei para compreender que “Every Grain of Sand” é uma canção de beleza extasiante. Mas isso realmente não tem importância.
Importante, creio, é o fato de que, ao me sentar aqui para tentar escrever este suelto que começou preso, não me lembrava exatamente de quando é a canção, em que disco ela apareceu. Esse tipo de coisa, no entanto, resolve-se facilmente. Mesmo na era pré-Google, bastava ir a um dos muitos livros sobre Dylan. Com o Google, claro, fica mais fácil ainda.
A “trip cristã de Dylan Zimmerman” começou em Slow Train Coming, o disco de 1979, continuou em Saved, de 1980, e prosseguiu, já menos enfática, menos radical, em Shot of Love, de 1981. No disco seguinte, Infidels, de 1983 (para o lançamento do qual a CBS brasileira me convidou para escrever o press-release), ele já deixava um tanto de lado as canções religiosas.
Pois bem: “Every Grain of Sand” é exatamente a última faixa do terceiro disco de aberta fé cristã do judeu Robert Allan Zimmerman.
Na minha opinião pessoal, é uma das mais belas canções do sujeito diante de quem até mesmo a vetusta Academia Sueca de Letras se curvou.
O que significa automaticamente dizer que é uma das mais belas canções que já foram feitas.
***
Tá legal – mas em que disco do George está essa gravação, diacho? Quando foi que ele gravou isso, como?
Quanto à primeira pergunta, eu diria – embora sem 110% de segurança – que a gravação não está em nenhum dos discos oficiais de George Harrison. Agora, quanto à segunda pergunta… Sei lá, meu! Não faço a menor idéia! Isso aqui é um suelto, não um artigo, uma reportagem. Eu só quis sair escrevendo umas mal traçadas, sem a menor idéia de onde queria chegar. Na verdade, sabendo que não iria chegar a lugar algum.
No YouTube, onde achei a gravação – ilustrada por diversas, diversas fotos de Dylan e George – está dito o seguinte: “Esta é uma edição feita por um fã utilizando uma performance improptu de George no rádio de 1987 com a faixa de Bob Dylan de 1981 por trás. Bob Dylan aparece nas backing voices e gaita. Foi criada como uma celebração da longa amizade de George e Bob e do 80º aniversário de George.”
“George’s improptu radio performance”? Como assim? Onde, quando, por quê?
Sei lá, meu. Isso aqui não é uma reportagem, uma pesquisa – é só um suelto. Aliás, cansei dele. Chega. Vou pra sala ouvir de novo George cantando “Every Grain of Sand”.
13 e 14/5/2024
Every Grain of Sand
Bob Dylan
In the time of my confession, in the hour of my deepest need
When the pool of tears beneath my feet flood every newborn seed
There’s a dying voice within me reaching out somewhere
Toiling in the danger and in the morals of despair
Don’t have the inclination to look back on any mistake
Like Cain, I behold this chain of events that I must break
In the fury of the moment, I can see the master’s hand
In every leaf that trembles, in every grain of sand
Oh, the flowers of indulgence and the weeds of yesteryear
Like criminals, they have choked the breath of conscience and good cheer
And the sun beat down upon the steps of time to light the way
To ease the pain of idleness and the memory of decay
I gaze into the doorway of temptation’s angry flame
And every time I pass that way I always hear my name
Then onward in my journey, I come to understand
That every hair is numbered like every grain of sand
I have gone from rags to riches in the sorrow of the night
In the violence of a summer’s dream, in the chill of a wintery light
In the bitter dance of loneliness fading into space
In the broken mirror of innocence on each forgotten face
I hear the ancient footsteps like the motion of the sea
Sometimes I turn, there’s someone there, at times it’s only me
I’m hanging in the balance of a perfect finished plan
Like every sparrow falling, like every grain of sand