“Jair Messias Bolsonaro chega ao fim de sua trajetória pública como começou, ainda como um jovem oficial do Exército: acusado de atentados. Na década de 1980, foi condenado e ficou preso 15 dias por decisão unânime de um conselho militar, sob acusação de tentativa de explodir prédios militares e públicos. Quarenta anos depois, é indiciado pela Polícia Federal, por tentar explodir a democracia brasileira.”
O parágrafo acima é de Eliane Cantanhêde. O abaixo é de Dora Kramer:
“A lógica do embate beligerante é da natureza de Bolsonaro. Em 1986, era cabo do Exército quando ficou preso durante 15 dias por atos de indisciplina relacionados à reivindicação por aumentos salariais na caserna. No ano seguinte, veio a público um plano para explodir bombas em quartéis e no sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Suspeitou-se do envolvimento de Bolsonaro que por isso foi julgado, em janeiro de 1988, pelo conselho de justificação da Força e considerado culpado por ‘conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe’.
Dora Kramer e Eliane Cantanhêde, duas das melhores jornalistas de Política do Brasil, coincidiram ao lembrar a origem extremista, golpista, terrorista, de Jair Bolsonaro, nos artigos que escreveram para, respectivamente, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo na quinta-feira, 21/11, o dia em que ele e mais 37 pessoas foram indiciados pela Polícia Federal, acusados de tramar abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado e organização criminosa.
Não dá para resistir: transcrevo abaixo as íntegras dos artigos de Eliane e Dora. Para fazer o registro aqui dos acontecimentos do dia histórico. E, diacho, porque morri de inveja das duas. Gostaria de ter escrito estes belos textos. (Sérgio Vaz)
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Uma vez golpista…
Por Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo, 21/11/2024
Jair Messias Bolsonaro chega ao fim de sua trajetória pública como começou, ainda como um jovem oficial do Exército: acusado de atentados. Na década de 1980, foi condenado e ficou preso 15 dias por decisão unânime de um conselho militar, sob acusação de tentativa de explodir prédios militares e públicos. Quarenta anos depois, é indiciado pela Polícia Federal, por tentar explodir a democracia brasileira.
Por mais aterrorizantes que sejam o planejamento e os passos concretos para assassinar o presidente e o vice-presidente legitimamente eleitos e o presidente do TSE, ninguém diga que foi surpresa. Bolsonaro não foi apenas flagrado no início da carreira militar, até com um croqui para explodir prédios do Exército, como passou toda a sua vida política ameaçando a democracia e as autoridades e poderes constituídos.
Num programa de TV, na década de 1990, chegou a defender claramente, sem nenhum pudor, o fechamento do Congresso, a deflagração de uma guerra civil e o assassinato do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Se pregava a morte de FHC, qual a surpresa de, no mínimo, saber do plano para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes? Uma vez golpista, sempre golpista. E foi para isso, e não para governar, que Bolsonaro tragou grupos específicos: militares, policiais, evangélicos, agronegócio. E dominou PF, Abin, Receita…
Ao se tornar o primeiro e mais estridente apoiador da candidatura Bolsonaro a presidente nas Forças Armadas, o general Augusto Heleno, tríplice coroado no Exército (primeiro de turma nos principais cursos do oficialato), me telefonou: “Você está sendo muito dura com o Bolsonaro, ele não é assim como você pensa”. Ao que respondi: “Tudo o que sei dele foram vocês (militares) que me disseram”. Ou seja: os militares sempre criticam e até desprezavam o capitão insubordinado, chamado de “mau militar” pelo general Ernesto Geisel.
Bastou Bolsonaro disparar nas pesquisas e depois subir a rampa do Planalto para muitos de seus críticos se transformarem em aliados, primeiro, bajuladores, depois, e até golpistas, no final. À custa da balela de “Deus, pátria e família”, do ódio à esquerda, do discurso da macheza e de cargos e vantagens, ele foi cooptando altas patentes e estraçalhando carreiras e biografias. Nunca, jamais, um presidente fez um estrago tão grande numa instituição que recuperou sua imagem e se tornara uma das mais prestigiadas do País.
Por quantos anos, ou décadas, Kids Pretos e Força Especial serão conduzidos não como tropa de elite, mas como um criadouro de bandidos antidemocráticos, com instinto assassino? Sem contar o víeis ridículo de tudo isso. Um oficial militar perambulando na rua porque não consegue um táxi na operação em que iria participar do assassinato do presidente do TSE? Seria cômico, não fosse trágico, terrívelmente trágico.
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Cabeça de extremista
Por Dora Kramer, Folha de S. Paulo, 21/11/2024
Não há dúvida razoável que possa desvincular o plano de assassinatos descoberto pela Polícia Federal do contexto golpista que culminou no ataque às sedes símbolos da República naquele 8/1, que ensejou as investigações cada vez mais reveladoras da existência de uma conspiração sediciosa no seio do Estado.
À luz da lógica e das trajetórias de alguns personagens, é difícil desconectar a trama posta em marcha logo após as eleições de 2022 das atitudes e ligações do então presidente Jair Bolsonaro.
O candidato a vice dele na chapa derrotada, general da reserva Walter Braga Netto, foi o anfitrião de ao menos uma reunião com os pretensos executores da eliminação de Luiz Inácio da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. No encontro estava o ajudante de ordens da Presidência, tenente-coronel Mauro Cid. Isso baseado em provas coletadas pela PF.
A despeito do envolvimento dos braços civis, ainda sob escrutínio dos investigadores, os até agora implicados no complô são todos militares, à exceção de um policial federal.
Isso em parte explica por que Bolsonaro se cercou deles no Palácio do Planalto, os escolheu duas vezes como vices e tratou de alojar no governo uma grande quantidade de gente com treino de combatente.
Recorreu à militarização muito provavelmente porque tinha esse pessoal como garantia de antídoto a investidas que enxergasse como ameaças. A lógica do embate beligerante é da natureza de Bolsonaro. Em 1986, era cabo do Exército quando ficou preso durante 15 dias por atos de indisciplina relacionados à reivindicação por aumentos salariais na caserna.
No ano seguinte, veio a público um plano para explodir bombas em quartéis e no sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Suspeitou-se do envolvimento de Bolsonaro que por isso foi julgado, em janeiro de 1988, pelo conselho de justificação da Força e considerado culpado por “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”.
Meses depois, submetido ao Superior Tribunal Militar, foi absolvido para logo depois passar para a reserva como capitão e entrar na política na condição de candidato (eleito) a vereador.
O relato desses episódios está em detalhes no livro O Cadete e o Capitão lançado em 2019 pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho, falecido em 2020. A hipótese aventada por Maklouf para a absolvição foi o “espírito de corpo” da instituição.
O caso em si, ocorrido há quase 40 anos, não serve como ligação direta entre ações do cabo e decisões do presidente, mas ajuda a traçar um perfil belicoso, afeito à insubordinação. Lá, a demonstração de desobediência à hierarquia militar. No exercício da presidência, a explicitação dessa tendência se fez presente na constante e provocativa insubmissão aos preceitos do Estado de Direito contemplados na Constituição.
Ainda está para ser comprovado, ou não, se o então presidente esteve no topo da cadeia de comando da sublevação urdida ao longo do ano de 2022 e acentuada depois da derrota nas urnas.
O inconformismo dele diante do resultado das eleições, contudo, ficou patente no silêncio algo conivente diante de manifestações de correligionários e admiradores radicalizados que pregavam a contestação seguida de retomada do poder.
Bolsonaro trancou-se no Palácio da Alvorada, recolhimento que seus aliados ora atribuíam a um estado depressivo, ora ao tratamento de uma erisipela nas pernas. Hoje, olhando o que veio à baila desde então, parece ter sido mais uma forma de precaução a fim de guardar distância do que estivesse por acontecer.
Se a intenção fosse respeitar as “quatro linhas”, aceitar a vitória de Lula, natural teria sido lançar uma ordem para o desmonte da mobilização de radicais ansiosos por uma inexequível virada da maré.
Ao se calar, alimentou a ilusão dos que agora clamam por uma inconcebível anistia por se verem na contingência de enxergar o horizonte pela ótica do sol quadrado.
22/11/2024