Posso estar enganado, evidentemente, mas acho que o que esta foto mostra é a síntese de um dos fatos político-sociais mais importantes dos últimos tempos no Brasil.
O 1º de Maio unificado das Centrais Sindicais – com Lula no palco, mais ministros, mais Guilherme Boulos, mais shows de rap e de pagode, com dinheiro da Petrobrás e via Lei Rouanet – só conseguiu juntar esses gatos pingados aí! (A foto é de Edi Sousa, da Ato Press.)
Sociológos, analistas, consultores, marqueteiros teriam que tentar nos explicar os motivos desse fracasso tão rotundo, tão absoluto.
“O ato está mal convocado. Nós não fizemos o esforço necessário para levar a quantidade de gente que era preciso levar”, disse o Lula – e ele está certo. Essa deve ser uma das explicações.
Mas não é possível que seja a única.
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Em 1979, Lula enchia o Estádio de Vila Euclides, no ABC. Há pouco, no X ex-Tweeter, @LulaOficial publicou essa foto impressionante, maravilhosa, com o seguinte texto:
“Em 1979, tem início a primeira greve geral de uma categoria de trabalhadores desde 1968. A primeira assembleia da greve aconteceu no estádio da Vila Euclides. Na falta de palanque e de som, Lula falou de cima de uma mesa de escritório usando um megafone.”
No início dos anos 80, Lula lotou aquele estádio diversas vezes – sem ministro algum, sem candidato a prefeito, sem show de rap e pagode, sem dinheiro da Petrobrás e via Lei Rouanet.
Como dia a letra de Caetano Veloso, admirador de Lula, alguma coisa está fora da ordem.
Como dizia a letra de Chico Buarque, fã incondicional de Lula, o tempo passou na janela.
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O gigantesco, colossal fracasso do ato no estacionamento do Estádio do Corínthians, em Itaquera, acabou ofuscado, no noticiário das tevês e dos jornais, pelo fato de Lula ter pedido votos para Guilherme Boulos, o que é proibido pela legislação eleitoral. Espero que, passado o primeiro momento, os analistas deixem de lado esse detalhe e se concentrem no que é de fato importante: por que tão pouca gente foi ao ato?
Gostaria de reunir aqui artigos sobre esse evento, análises que tentassem explicar o que aconteceu. Começo com os dois que estão nos jornais desta quinta-feira, 2/5.
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Choque de realidades
Por Merval Pereira, O Globo, 2/5/2024.
A decepção do presidente Lula com a pouca presença de manifestantes na comemoração do 1º de Maio em São Paulo revela uma dificuldade nova para o PT. Lula atribuiu a falta de público à má organização do comício, feita pelos sindicatos de trabalhadores ligados ao partido. Não lhe passou pela cabeça que esta, como outras recentes manifestações petistas, teve pouco público porque os sindicatos já não conseguem mais arrebatar seus associados depois que a contribuição sindical obrigatória foi extinta e que as relações de trabalho se alteraram com a reforma trabalhista.
Quando a oposição dizia que os militantes petistas iam às manifestações por causa do sanduíche de mortadela que era distribuído, evidentemente tentava desmoralizá-los, retirando dos comícios e das passeatas o caráter ideológico marcante nas manifestações petistas nos tempos em que Lula era o líder popular máximo, com popularidade de ditador, na casa dos 80%. Só que, no caso de Lula, havia verdade naquelas medições, pois nos seus dois primeiros governos eram novidades as medidas sociais, como Bolsa Família, crédito consignado ou Luz para Todos.
Os escândalos do mensalão e do petrolão ajudaram a macular a imagem de Lula como líder popular intocável. O desastre dilmista corroeu boa parte da sua credibilidade. Sua eleição em 2022 deveu-se muito mais a questões políticas que à popularidade. Grande parte dos que lhe davam 80% de apoio nos anos de 2003 a 2010 passou para o outro lado, assumindo posição ideológica oposta, porque o PT não se adaptou às modernas maneiras de fazer política.
Desde o uso das redes sociais, hoje dominadas pela direita, até as novas maneiras de encarar as relações de trabalho. Exemplar desse distanciamento da nova realidade é a lei que tentou transformar os motoristas de aplicativos em trabalhadores CLT. O que foi anunciado como grande conquista dos trabalhadores foi mal recebido pela maioria dos motoristas, a ponto de Lula ontem ter tentado explicar que o governo não exige que os motoristas se filiem a sindicatos.
Os tempos mudaram, e esse é um exemplo claro do anacronismo da visão petista das relações trabalhistas. Os motoristas de hoje não precisam mais comprar carro ou pagar diária para os donos para trabalhar em táxis. Geralmente é um emprego provisório, à espera de alguma coisa melhor, de um empreendimento próprio ou como complementação salarial. Não querem saber de sindicatos em cima deles, muito menos de apoiar politicamente quem seus líderes apontam.
A frustração com o pouco comparecimento do público reflete uma ideia anacrônica de sindicalismo que ainda persiste e apoia Lula, mas não tem muita força no mercado de trabalho. Este 1º de Maio não foi como Lula gostaria. Do ponto de vista do bolso do trabalhador, o governo tem bons números para mostrar: o emprego aumentou, principalmente com carteira assinada, o salário médio cresceu no país. O ambiente para o trabalhador melhorou de maneira geral, mas essa melhoria ainda não é identificada pela população, porque o preço dos alimentos está muito alto, o que impede a mudança da sensação.
A situação mundial está conturbada, há pressões em vários setores da economia. O clima de embate político permanente também não ajuda a distensionar o ambiente, e a oposição explora essa insegurança nas redes sociais, expondo números contraditórios com os oficiais. Enquanto Lula se vangloriava de a taxa de desemprego ser de 7,9%, a menor de um primeiro trimestre em dez anos, a oposição destacava que, no quarto trimestre do ano passado, a taxa era de 7,4%.
Ontem Lula não teve muito a oferecer como expectativa de futuro. As pesquisas de opinião mostram o desagrado com o governo e constatam que a impopularidade de Lula está aumentando, enquanto o governo acha que talvez precise de tempo para que os benefícios tenham efeito real na vida dos brasileiros.
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Três recados de Lula no 1º de Maio
Por Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo, 2/5/2024
Lula não escondeu o incômodo diante da plateia do 1º de Maio em São Paulo. O presidente reproduziu uma bronca dada em sua equipe pela falta de esforço para levar ao ato “a quantidade de gente que era preciso levar”. Ainda assim, tentou sair por cima: “Eu estou acostumado a falar com mil, com 1 milhão, mas também, se for necessário, eu falo com uma senhora maravilhosa que está ali na minha frente”.
O evento foi organizado por centrais sindicais. O petista sabe que a capacidade de mobilização dessas organizações foi drenada pelo fim do imposto obrigatório. O que inquieta Lula de verdade é o retorno político modesto que o governo tem conseguido colher dentro de um público estratégico.
Em seus primeiros mandatos, o petista conjugou benefícios sociais para a população mais pobre com medidas que favoreciam de forma abrangente uma classe trabalhadora que ocupava um degrau acima na pirâmide de renda. Agora, o governo tem captado certa antipatia no segundo grupo.
Antes de transformar o ato numa flagrante propaganda eleitoral antecipada a favor de Guilherme Boulos, Lula usou o discurso do Dia do Trabalhador para enviar três recados a uma fatia-chave da ampla classe média nacional. O primeiro e mais evidente foi a sanção da lei que amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda. Ali, o presidente repetiu a promessa de campanha de livrar da tributação quem tem salário de até R$ 5.000 por mês.
O petista aproveitou para citar explicitamente a “classe média” como potencial beneficiária da desoneração da cesta básica prevista na reforma tributária. Ainda que a medida atinja em cheio a população de baixa renda, Lula sabe que o mau humor com o preço da comida se espalha por outros segmentos.
O presidente também decidiu enfrentar um tema que é uma pedra no sapato das relações do governo com o mundo do trabalho. Disse que o projeto do governo para regulamentar o trabalho por aplicativos não prejudica essa atividade (“A gente não mexe com o direito de ser autônomo”) e abriu os cofres para aqueles que atuam como empreendedores (“Quem quiser trabalhar por conta vai ter apoio do governo e crédito a juros baratos”).
2/5/2024