Quando invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia tinha como estratégia alcançar a vitória por meio de uma guerra de curta duração. A enorme superioridade bélica em relação ao país invadido alimentava sua esperança de conquistar no teatro de operações três objetivos estratégicos: frear a expansão da OTAN em direção às suas fronteiras, consolidar a Crimeia como território russo e estabilizar a russificação das províncias ucranianas de Lugansk e Donetsk.
Um ano depois é visível o fracasso da blitzkrieg russa. Em vez de uma vitória rápida e de baixos custos materiais e humanos, Vladimir Putin se aventurou em uma guerra de atrito, de alto custo para os dois países beligerantes, cujo término não se vislumbra no horizonte. Cometeu o mesmo erro de Carlos XII em 1708, de Napoleão em 1812 e de Adolf Hitler em 1941, quando invadiram a própria Rússia: subestimar a resistência de um povo quando sua pátria está em perigo.
Agora o invasor é a Rússia e tem diante de si a perspectiva de se envolver em uma guerra de desgaste de longa duração, a exemplo do que enfrentou no Afeganistão, nos anos 80. Historicamente uma guerra que se arrasta por largo tempo corrói a moral da tropa invasora e desgasta seu poder de combate. Vide os Estados Unidos no Vietnã. Como afirmou Joe Biden no discurso de sua visita de surpresa a Kiev, “haverá dias, meses e anos difíceis pela frente”.
A estratégia russa fez água ao desconsiderar os ucranianos como um povo, cuja comunhão de destino o molda como uma nação. Ainda que tenham pontos em comum em sua história, ucranianos e russos não são um mesmo povo e muito menos uma mesma nação.
Putin também subestimou o quanto os Estados Unidos e a OTAN iriam fundo no apoio ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Apostou no “general inverno”, na crença de que a dependência dos países europeus em relação ao gás e ao petróleo russo faria o bloco ocidental pressionar a Ucrânia a negociar uma paz palatável aos russos. A Europa sobreviveu aos rigores do inverno com a Alemanha, principal dependente do petróleo russo, diversificando seus fornecedores e suas fontes energéticas.
Mas também fracassou a estratégia dos países da aliança ocidental de asfixiar economicamente a Rússia, forçando-a a desistir da guerra. Acreditava a OTAN que o bloqueio econômico faria a popularidade de Putin despencar. Sua previsão de que surgiria uma forte oposição antiguerra, inclusive dos magnatas russos com suas fortunas bloqueadas, não se confirmou.
Em 2022 a queda do PIB russo ficou distante dos mais de 10% esperado, sendo de apenas 2,5%. Para 2023 a previsão é de um pequeno crescimento. Mesmo com o bloqueio, e o petróleo vendido a preço bem inferior ao do mercado internacional, as exportações subiram em 2022, puxadas pelas compras da China. E a inflação ficou em patamar inferior a 12%. Em abril era de 17%. Isso explica o fato de o governo Putin ser aprovado por 80% da população. A maioria dos russos comprou a tese de Putin de que a guerra não é só contra a Ucrânia. É também “uma resposta ao cerco do Ocidente”.
O foco volta-se para o campo de batalha, onde o impasse está dado. A ofensiva ucraniana do outono, que tinha levado à reconquista de territórios em mãos dos russos, perdeu fôlego. E a Rússia prepara a ofensiva da primavera, avançando no Leste da Ucrânia, com vistas a controlar totalmente Lugansk e Donetsk.
A maneira de equilibrar a correlação de forças em favor da Ucrânia passa pelo maior envolvimento dos Estados Unidos e da OTAN no conflito. Por enquanto, não pelo envio de tropas, mas pelo fornecimento de tanques ultramodernos, como o alemão Leopold 2, e o norte-americano Abrams.
A lógica da guerra é de a OTAN ampliar sua ação, principalmente se aumentar o risco de uma vitória da Rússia. Nessa hipótese, o pleito do presidente ucraniano ao Ocidente para que sejam fornecidos aviões-caças pode vir a ser atendido. Isso daria à Ucrânia o poder de atacar território russo, levando o conflito a um novo patamar.
As eleições americanas se darão em 2024 e começarão a pesar no tabuleiro geopolítico. Biden não pode disputar um segundo mandato pairando sobre sua cabeça a hipótese de uma derrota ou de um acordo humilhante para a Ucrânia. Sua passagem por Kiev teve o objetivo de demonstrar que apoiará os ucranianos “até a vitória final”. O único limite é a presença de soldados americanos no palco da guerra. O trauma do Afeganistão é forte na alma americana. Por isso, Biden prefere travar uma “guerra por procuração”.
Já Putin, isolado do Ocidente, volta-se para o Oriente, para relações com a Índia, a Arábia Saudita, o Irã, a Turquia, e sobretudo para seu principal aliado, a China. Não é da tradição do país de Xi Jinping ampliar sua influência pelo caminho bélico. Os chineses se transformaram na segunda potência mundial pela via econômica e comercial.
Mas a divisão do mundo em dois blocos pode levar a China a ter um papel mais pró-ativo. Sintomaticamente, o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blynken, deu declarações de que os chineses avaliam fornecer armas à Rússia. A guerra da Ucrânia turbina a rivalidade estratégica entre Estados Unidos e a China, os pólos principais da “nova guerra-fria”.
O mundo ficou bem mais perigoso depois de 24 de fevereiro de 2022. Até mesmo o fantasma de um holocausto nuclear, que se imaginava descartado desde a hecatombe da União Soviética, voltou a pairar sobre nossas cabeças. Em seu discurso desta terça-feira, Putin anunciou a suspensão da participação russa no tratado de desarmamento nuclear, o Novo Start. Sem este tratado, a humanidade pode se deparar diante de uma nova corrida nuclear.
O caminho da paz como solução para o conflito seria o mais sensato, mas está distante porque os atores que operam no campo de batalha não dão demonstrações de que estão dispostos a sentar-se à mesa de negociação.
Nem por isso a busca pela paz deve ser deixada de lado. Mas não se pode ignorar que nessa guerra há um país invasor e outro que é vítima. A Ucrânia e seu povo têm arcado com o fardo pesado de uma guerra responsável pela morte de mais de 300 mil pessoas. Cinco milhões de ucranianos se refugiaram em outros países. A economia ucraniana teve um tombo de mais de 30%. Suas cidades foram destruídas, os ucranianos perderam suas casas, seu meio-de-vida, quando não a própria vida. Mesmo assim, mantém sua firme disposição de defender o seu direito de existir como um povo e uma nação.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 22/2/2023.